Mercadoria me confesso

por Hélder Verdade Fontes,    10 Novembro, 2023
Mercadoria me confesso
PUB

Grassa em mim uma asfixia. Sinto que fui esmagado para caber dentro de uma pequena caixa e, enquanto lá estou, sou apenas o que ela me permite ser. Ou, melhor dito, o que quem construiu a caixa me permite. Trocado de mãos a uma velocidade insana, sou comprado e vendido diariamente. Tratado como mera mercadoria, não tenho personalidade, visões ou características. Não sou eu, sou apenas mais um produto do sistema, atomizado e encaixotado. Passo cada vez mais tempo dentro dela, conforme aumenta a mercantilização e financeirização da minha vida. Estou próximo do ponto em que a minha individualidade deixará de existir — estou a parcos passos de um ser amorfo, de me confundir totalmente com a caixa. Constato que esta asfixia é transversal a quase todos nós: cada um encontra-se igualmente dentro da sua. 

A criação da economia de mercado extravasou largamente as suas fronteiras ao transformar os indivíduos e a própria sociedade em seus súbditos — em meras mercadorias. Todos os aspectos das nossas vidas estão dominados por forças de mercado. Não há nada neste momento que escape ao sistema mercantil: ele repudia tudo o que fuja à sua lógica de procura e oferta, de compra e venda, porque a existência de uma economia não-mercantil é uma ameaça. Internalizar todos os aspectos que estejam ou queiram estar fora é condição sine qua non para a sua auto-preservação. Colocar os indivíduos dentro de caixas atomizadas o máximo de tempo possível é fulcral para a sua subsistência. 

Tendo isto em conta, é sem grandes surpresas que se afirma que o sistema mercantil determina tudo: as relações, os produtos, as mundividências, as ideologias. Em suma, a vida. O que causa surpresa é a apatia perante esta mercantilização total. Tornamo-nos coniventes com este estado de sonambulismo compressor e unidimensional que nos obriga, permanentemente, a actuar como consumidores e produtores, como mercadores e mercadorias. Existe uma dualidade de critérios gritante quando se denuncia, e bem, a autocracia política e social, mas nunca é referida uma palavra para a autocracia imposta pelo mercado, a que nos obriga a construir, entrar e a caber na caixa. 

Para mostrar que o mercado efectivamente domina a nossa vida basta pensar na forma como deixamos que o nosso tempo seja genericamente aceite como mercadoria sem o mínimo de rebuliço social. Neste caso, é profundamente errado – e até conservador – considerar apenas o tempo de trabalho como alvo. A jornada laboral diminuiu, sobretudo graças a várias conquistas sociais, mas nem por isso a mercantilização das nossas vidas cessou. Pelo contrário, o que conseguimos reaver por um lado foi-nos removido por outro. Antigamente, poderia concordar com a ilação de que o descanso era um tempo obrigatório de pausa entre fases produtivas, isto é, não era comercializado. Hoje, o tempo livre tornou-se uma comodidade (commodity) de venda e compra tão ou mais mercantilizada que o tempo laboral. Todos os minutos que temos disponíveis servem para sermos constantemente bombardeados por estímulos, anúncios, informações, produtos. O tempo livre deixou de o ser. Sobretudo, deixou de ser nosso — passou a ser do mercado. A nossa proposição, se quisermos actuar no cerne da questão, tem de ser bem mais estrutural do que apenas reduzir jornadas laborais.

Parece-me também relativamente claro que algo mercantilizado muito dificilmente responderá às necessidades da sociedade, justamente porque se torna uma comodidade. Este estado de privatização da natureza humana impede a nossa igualdade pela simples razão de que a mercadoria é comprada por alguém — os restantes que se vendam. A mercantilização dos seres e do seu tempo é, aliás, uma das formas de estruturar e legitimar um mantra ideológico para a desigualdade: quanto mais frágil és, mais mercantilizado terás de ser para obter a subsistência básica, fazendo com que o fosso entre cidadãos nunca se dissipe. O tempo atomizado torna-se assim componente fundamental e necessária para a desigualdade pós-moderna. 

A maior vitória da distopia neoliberal é fazer-nos acreditar que tudo isto é natural, desejável e necessário, quando na realidade é precisamente o contrário. O desacoplamento entre cidadãos, sociedade e mercado resultará na destruição de uns e outros. Travar a mercantilização — e reverter tanto quanto possível este processo insano — é quiçá a maior tarefa que temos nas nossas mãos, mas a dimensão do desafio não nos deve inibir. Cada um tem de destruir a sua caixa. Falo também por mim e para mim. Porque quero sair da caixa. Porque quero deixar de ser mercadoria. Porque quero ser eu.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.