Mercadoria me confesso
Grassa em mim uma asfixia. Sinto que fui esmagado para caber dentro de uma pequena caixa e, enquanto lá estou, sou apenas o que ela me permite ser. Ou, melhor dito, o que quem construiu a caixa me permite. Trocado de mãos a uma velocidade insana, sou comprado e vendido diariamente. Tratado como mera mercadoria, não tenho personalidade, visões ou características. Não sou eu, sou apenas mais um produto do sistema, atomizado e encaixotado. Passo cada vez mais tempo dentro dela, conforme aumenta a mercantilização e financeirização da minha vida. Estou próximo do ponto em que a minha individualidade deixará de existir — estou a parcos passos de um ser amorfo, de me confundir totalmente com a caixa. Constato que esta asfixia é transversal a quase todos nós: cada um encontra-se igualmente dentro da sua.
A criação da economia de mercado extravasou largamente as suas fronteiras ao transformar os indivíduos e a própria sociedade em seus súbditos — em meras mercadorias. Todos os aspectos das nossas vidas estão dominados por forças de mercado. Não há nada neste momento que escape ao sistema mercantil: ele repudia tudo o que fuja à sua lógica de procura e oferta, de compra e venda, porque a existência de uma economia não-mercantil é uma ameaça. Internalizar todos os aspectos que estejam ou queiram estar fora é condição sine qua non para a sua auto-preservação. Colocar os indivíduos dentro de caixas atomizadas o máximo de tempo possível é fulcral para a sua subsistência.
Tendo isto em conta, é sem grandes surpresas que se afirma que o sistema mercantil determina tudo: as relações, os produtos, as mundividências, as ideologias. Em suma, a vida. O que causa surpresa é a apatia perante esta mercantilização total. Tornamo-nos coniventes com este estado de sonambulismo compressor e unidimensional que nos obriga, permanentemente, a actuar como consumidores e produtores, como mercadores e mercadorias. Existe uma dualidade de critérios gritante quando se denuncia, e bem, a autocracia política e social, mas nunca é referida uma palavra para a autocracia imposta pelo mercado, a que nos obriga a construir, entrar e a caber na caixa.
Para mostrar que o mercado efectivamente domina a nossa vida basta pensar na forma como deixamos que o nosso tempo seja genericamente aceite como mercadoria sem o mínimo de rebuliço social. Neste caso, é profundamente errado – e até conservador – considerar apenas o tempo de trabalho como alvo. A jornada laboral diminuiu, sobretudo graças a várias conquistas sociais, mas nem por isso a mercantilização das nossas vidas cessou. Pelo contrário, o que conseguimos reaver por um lado foi-nos removido por outro. Antigamente, poderia concordar com a ilação de que o descanso era um tempo obrigatório de pausa entre fases produtivas, isto é, não era comercializado. Hoje, o tempo livre tornou-se uma comodidade (commodity) de venda e compra tão ou mais mercantilizada que o tempo laboral. Todos os minutos que temos disponíveis servem para sermos constantemente bombardeados por estímulos, anúncios, informações, produtos. O tempo livre deixou de o ser. Sobretudo, deixou de ser nosso — passou a ser do mercado. A nossa proposição, se quisermos actuar no cerne da questão, tem de ser bem mais estrutural do que apenas reduzir jornadas laborais.
Parece-me também relativamente claro que algo mercantilizado muito dificilmente responderá às necessidades da sociedade, justamente porque se torna uma comodidade. Este estado de privatização da natureza humana impede a nossa igualdade pela simples razão de que a mercadoria é comprada por alguém — os restantes que se vendam. A mercantilização dos seres e do seu tempo é, aliás, uma das formas de estruturar e legitimar um mantra ideológico para a desigualdade: quanto mais frágil és, mais mercantilizado terás de ser para obter a subsistência básica, fazendo com que o fosso entre cidadãos nunca se dissipe. O tempo atomizado torna-se assim componente fundamental e necessária para a desigualdade pós-moderna.
A maior vitória da distopia neoliberal é fazer-nos acreditar que tudo isto é natural, desejável e necessário, quando na realidade é precisamente o contrário. O desacoplamento entre cidadãos, sociedade e mercado resultará na destruição de uns e outros. Travar a mercantilização — e reverter tanto quanto possível este processo insano — é quiçá a maior tarefa que temos nas nossas mãos, mas a dimensão do desafio não nos deve inibir. Cada um tem de destruir a sua caixa. Falo também por mim e para mim. Porque quero sair da caixa. Porque quero deixar de ser mercadoria. Porque quero ser eu.