Mia Couto: “O paradoxo é que o cimento da identidade moçambicana é a língua portuguesa”

por Fumaça,    25 Julho, 2019
Mia Couto: “O paradoxo é que o cimento da identidade moçambicana é a língua portuguesa”
Mia Couto / Fumaça
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– Os portugueses estiveram tanto tempo fechados connosco que agora há os que querem ser iguais a eles.

Esse era o seu constante sonho. Depois, ele se conformou melhor consigo mesmo. Vestiu-se melhor com sua pele, configurado na alma em que nascera. Seu medo era esse: que esses que sonhavam ser brancos segurassem os destinos do país. Proclamavam mundos novos, tudo em nome do povo, mas nada mudaria senão a cor da pele dos poderosos. A panela da miséria continuaria no mesmo lume. Só a tampa mudaria.” (Vinte e Zinco, de Mia Couto, publicado em 1999).

Em Moçambique, pouco se fala da guerra, diz Mia Couto. Se se julgasse pela oralidade, achar-se-ia que ela nunca existiu (ou que se esqueceu). Para reconstruir o país após onze anos de Guerra pela Independência (1964-1975) e de 15 da Guerra Civil (1977-1992) foi preciso que muitos fingissem esquecer muitas coisas, diz: “Esquecemos da escravatura, esquecemos do tempo colonial, esquecemos da Guerra Civil.” Caberia, então, à literatura ser a chave para visitar esse falso vazio calado dentro de cada um. Isto, afirma, sem ter fé de que a literatura possa produzir grandes mudanças no mundo, senão uma: erguer o outro – alguém que nos é distante, que desconhecemos – como alguém que tem uma história. “E se tem uma história ele é humanizado ou re-humanizado.”

Para Mia Couto, só contando histórias se tratam os traumas da guerra.

Nascido há 64 anos, na Beira, o biólogo, professor de ecologia e antigo jornalista é o escritor moçambicano mais traduzido. Escreve em português, a sua língua-mãe, num país onde menos de metade da população a fala; num território com 41 outras línguas nativas, onde se estima que só para 10% dos quase 28 milhões de moçambicanos o português seja a língua materna. Mia não poderia escrever noutra língua, assume, mas é por condições estruturais de uma sociedade pós-colonial que nenhum dos escritores que conhece o faz.

O escritor é crítico de uma certa ideia de lusofonia e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) – fundada em Lisboa, em 1996, pelos chefes de Estado e de Governo de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal e São Tomé e Príncipe. Os governantes consideraram imperativo, entre outras questões: “Consolidar a realidade cultural nacional e plurinacional que confere identidade própria aos Países de Língua Portuguesa, refletindo o relacionamento especial existente entre eles e a experiência acumulada em anos de profícua concertação e cooperação”, lê-se na Declaração Constitutiva da CPLP.

Num país que, denuncia, muitas vezes tem vergonha da sua diferença, as elites deixaram-se assimilar por formas de pensamento coloniais, importadas da Europa branca, por encontrarem nelas uma forma de preservarem o seu poder. Para Mia Couto, é urgente descolonizar o pensamento. Mas, antes disso, descobrir como o fazer.

Nota: Um agradecimento ao Miguel Dores pela ajuda na preparação desta entrevista.

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