Miguel Esteves Cardoso e Jair Bolsonaro

por Luís Osório,    2 Setembro, 2019
Miguel Esteves Cardoso e Jair Bolsonaro
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Miguel Esteves Cardoso escreveu duas crónicas sobre Jair Bolsonaro e a Amazónia. Um dos seus argumentos é peculiar: eu não gosto de Bolsonaro, mas se os brasileiros nele votaram o homem tem de ser respeitado. E o mesmo princípio defendeu para a Amazónia: se é certo que um incêndio desta dimensão pode ter implicações para o mundo não é menos certo que a Amazónia é um problema brasileiro, não nosso.

Esteves Cardoso marcou várias gerações de portugueses. As suas crónicas, textos e criatividade foram, sobretudo no Independente e na revista K, fundamentais. Há um antes e um depois de Esteves Cardoso. Trouxe luz a muitas trevas, ofereceu cosmopolitismo onde antes existia o mofo saloio do Estado Novo e combateu uma pureza ideológica e cultural de esquerda que não era justa ou progressista. Aconteça o que acontecer ficará para a história do jornalismo e das letras.

Nos últimos anos tem escrito (e pensado) muito mais sobre a praia das Maçãs, a qualidade das laranjas, do peixe fresco, das sardinhas, dos bons restaurantes, dos gins que merecem a pena ser bebidos e do amor pela mulher que escolheu (estas muito bonitas, por sinal). Não é uma crítica, até por ser uma opção de MEC. É como se tivesse decidido viver na borda do mundo, num país imaginário onde se isolou e de onde nos vai dando notícias. De quando em vez regressa fulgurante e oferece-nos crónicas mordazes, certeiras e até mesmo geniais, mas na maior parte dos casos escreve sem comprometimento, como os jogadores de futebol que correm a passo na ideia (talvez certa) de que são aplaudidos por carregarem um nome glorioso nas camisolas.

A sua opinião sobre Bolsonaro é grave. E só por isso decidi escrever este postal. Se fosse apenas reacionária não viria nenhum mal ao mundo. O seu reacionarismo é brilhante e ajudou a forjar um pensamento alternativo. Só que, neste caso, os argumentos são falaciosos. Pela mesma ordem de ideias, os americanos teriam deixado a Europa definhar às mãos dos nazis, afinal o problema era europeu. Da mesma maneira que centenas de voluntários não estariam hoje a trabalhar em campos de refugiados um pouco por todo o mundo.

A crónica de MEC é perigosa. Porque condena figuras como Greta Thunberg por interferência nos assuntos de estados soberanos. Afinal, se Trump não assina os protocolos ambientais o problema é dele e dos americanos. Afinal, se Salvini é um Mussolini em potência o problema é dos italianos. Afinal, não nos podemos meter ou condenar os excessos da Polónia e da Hungria porque estão no seu direito. Afinal, se fossemos contemporâneos de Hitler não poderíamos interferir com a política antissemita porque, afinal, o Partido Nacional Socialista ganhara as eleições e isso era lá com os bávaros.

Não, caro Miguel. Podemos. E devemos. Jair Bolsonaro é um fascista. E se os brasileiros votaram num fascista isso é um assunto deles, mas se as suas politicas têm como consequência a destruição da Amazónia (como as políticas de Trump têm incentivado movimentos populistas no mundo) então devem ser combatidos pela opinião pública mundial, pelas pessoas de bem e por todos os poderes que internacionalmente for importante arregimentar.

O Brasil merece outro presidente, afirmou muito bem Macron. O Brasil é a pátria de grandes figuras da história do pensamento e da cultura. O país de Chico (que dedicou Fado Tropical aos portugueses interferindo num assunto que também era só nosso), de Vinicius, de Gilberto, de Lispector, de Machado de Assis, de Jorge Amado, de Niemeyer e de vários outros. Mas também o país que elegeu Bolsonaro. Um país de e com elites preparadas, mas também com uma democracia que parece colada com cuspo. Uma democracia sem preservativo, um samba de uma nota só. Alguma coisa terá de ser feita.

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