Miguel Sousa Tavares não está sozinho
Os comentadores televisivos e os jornalistas portugueses têm a obrigação moral e social de não propagarem discursos de ódio. Devemos em conjunto chamá-los a assumir responsabilidades e repetir as vezes que forem necessárias que a discriminação não é uma opinião, a discriminação é crime.
A definição de transfobia partilhada pela APAV (2018, p.30) determina a intolerância e preconceito contra pessoas trans, incluindo “a crença de que sexo e género devem ser tomados como sinónimos, isto é, que existem somente dois géneros (tal como a existência de dois sexos) definidos à nascença. A transfobia também pode ser vista como resultado de uma imposição de regras sociais sobre como as pessoas devem expressar o seu género”.
Miguel Sousa Tavares esteve no Jornal Nacional da TVI, no passado dia 26 de outubro, onde comentou o prémio Miss Portugal, entregue a Marina Machete, uma mulher trans, proferindo palavras altamente transfóbicas em plena televisão nacional. O discurso foi mais uma violência contra pessoas LGBTI+, em particular contra pessoas trans, pessoas que já são frequentemente discriminadas e que não precisam de campanhas de ódio com este grau de alcance mediático.
“É sem dúvida importante que haja um debate sobre os impactos deste tipo de concursos na nossa sociedade, visto que as participantes podem estar sujeitas a um sistema de classificação antiquado e que as explora e objetifica.”
Têm surgido nas últimas horas centenas de comentários nas redes sociais a denunciar o discurso transfóbico de Miguel Sousa Tavares, e outras centenas a defenderem a sua opinião. Sejamos pragmáticos: este tipo de discurso não é uma opinião, é um crime definido no Artigo 240º (Livro II, Título III) do Código Penal, não sendo, portanto, permitido por lei, cito, difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica, com uma possibilidade de pena de prisão de 6 meses a 5 anos.
O ataque a feministas por parte de Miguel Sousa Tavares demonstra a sua fraquíssima capacidade de argumentação. É sem dúvida importante que haja um debate sobre os impactos deste tipo de concursos na nossa sociedade, visto que as participantes podem estar sujeitas a um sistema de classificação antiquado e que as explora e objetifica. No entanto, não foi este o tema trazido por Miguel Sousa Tavares, foi apenas uma posição oportunista da sua parte para tentar legitimar a sua clara transfobia.
“A discriminação é um problema grave que se encontra institucionalizado, aglomerando todo o tipo de discriminações, sejam elas pela identidade de género, racismo ou orientação sexual. Não podemos esquecer todos os episódios de discriminação presentes na comunicação social ao longo das últimas décadas.”
Como se não bastasse, o jornalista presente, José Alberto Carvalho, em resposta à pergunta feita por Miguel Sousa Tavares “casavas com esta mulher?”, apontando para a fotografia da vencedora, responde, entre sorrisos, “não, não [casava], de todo, de todo”. Este comportamento é, para além de absolutamente inadequado, um desrespeito para todos os espetadores. Os jornalistas devem conhecer e cumprir o seu código deontológico, lembrando que parte deste exige, entre outros deveres, a recusa de tratamento discriminatório de pessoas em função da sua ascendência, cor, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social, idade, sexo, género ou orientação sexual. Tendo em conta os acontecimentos dos últimos anos, percebemos que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que é responsável por regular, supervisionar e assegurar os valores da Constituição e da lei dos meios de comunicação social, está em coma absoluto.
Temos de ter em conta que este problema não advém de um episódio ou de um único canal de televisão, seja ele privado ou público. A discriminação é um problema grave que se encontra institucionalizado, aglomerando todo o tipo de discriminações, sejam elas pela identidade de género, racismo ou orientação sexual. Não podemos esquecer todos os episódios de discriminação presentes na comunicação social ao longo das últimas décadas. Não podemos esquecer, por exemplo, o confronto entre o antropólogo Miguel Vale de Almeida e a homofobia declarada de José Cid no programa da RTP2, “A Revolta dos Pastéis de Nata”, em 2006. Não podemos esquecer Manuel Luís Goucha que tem dado plataforma a pessoas que promovem discursos de ódio, racismo, homofobia, transfobia e indivíduos de extrema-direita, tornando-se esta figura televisiva uma das principais portas para a discriminação em Portugal. Não podemos esquecer todos os comentários de Joana Amaral Dias, entre tantos outros. Não é obviamente possível elencar todas as personagens, internacionais e nacionais, com estas mesmas posições, mas sabemos que são muitos. Miguel Sousa Tavares não está sozinho, é um facto, mas os defensores da igualdade, do respeito e do amor também não.