Millennial Beach
Pediram-lhe a ela, logo ela, que escrevesse um texto sobre a sua geração. Era o seu primeiro dia no estágio não remunerado, não era o primeiro estágio, mas à segunda licenciatura e a meses de se inscrever no mestrado de comunicação nas redes sociais, tinha de começar a pensar no seu futuro. Patrícia, disse-lhe o Publisher do site, é importante que os jovens de hoje se revejam no seu texto, é essa a sua missão, acredito em si! E saiu, como Patrícia gostava de ter saído também. Já o tinha feito antes e para quê? Tinha chegado a altura de aceitar ficar em algum lugar. Ali não parecia um mau lugar e, sentada, começou a escrever um texto:
Algures numa praia, em que o mar está do lado do areal e o areal do lado do mar, um grupo de jovens convive, entre toalhas estendidas e corpos reluzentes. O som é de festa. Estão ali mas também podiam não estar, podem entrar e sair quando quiserem mas optam por não o fazer e alguns até decidem não estar lá apesar de lá estarem: Bem-vindos à Millennial Beach.
Sempre nos divertiu e entusiasmou catalogar os que nasceram depois de nós como inferiores, menos sábios, mais brutos e com arestas mais afiadas. Chamava-se a isso juventude, antes, e agora também se continua a chamar. Ser jovem é ter dúvidas, claro, mas é mais do que isso, é ajudar o mundo fazendo perguntas. Será que a história dos acontecimentos antes de mim está bem contada? Claro que não. Foi escrita por pessoas que foram jovens há demasiado tempo. Será que devo ser o que esperam de mim, os meus pais? Claro que não. Um jovem alinhado com os pais é um jovem desalinhado com o futuro.
Nunca vivemos tanto tempo e nunca tivemos uma esperança média de vida tão alta, nisso a nossa idade biológica há muito que não coincide com a nossa idade social. Biologicamente, os ciclos do nosso corpo natural estão programados para uma existência entre trinta a quarenta anos; mas nós mais que duplicámos esse tempo de fim de vida expectável, logo podemos ser jovens mais tempo. Podemos questionar mais tempo. Podemos ser revolucionários mais tempo. Podemos reler a história mais tempo. E podemos, sobretudo, aprender, durante muito mais tempo.
Para um jovem de uma tribo paleolítica, as aprendizagens tinham de ser muito rápidas, e talvez no espaço de cinco anos passasse directamente de ser criança, totalmente dependente, a adulto totalmente produtor. Por isso, tantos são os rituais de passagem, em que os jovens são colocados perante um desafio mediúnico de enfrentamento, com os monstros mais sagrados da sua cultura. E, como cada cultura encontrava meios específicos para o seu ritual de passagem, a juventude dependia de qual era a tribo onde se nascia.
Hoje, a nossa tribo é global ou praticamente global. Essa ideia de que ainda é possível definir, em absoluto, uma jovem portuguesa de uma jovem coreana, é perigosa. De facto, a língua materna é diferente, a etnia é diferente, a gastronomia é diferente, mas as aspirações e as referências aspiracionais são exactamente as mesmas. Conhecer o mais possível do mundo e não ganhar raízes, como os nossos pais, é a fórmula que se mantém; querer ser conhecido de alguma maneira e admirado o mais possível, é a fórmula que a tribo globalista, aquela onde realmente todos vivemos, nos propõe.
Haverá algo inato na nossa espécie, que nos faça querer ser admirados e seguidos pelo máximo possível de indivíduos? Claro que há! Do Paleolítico à actualidade, a nossa natureza indica-nos esse caminho, como forma de ganhar poder de decisão sobre o grupo, e sobre toda a tribo. Queremos sempre fazer as coisas à nossa maneira, e isso também é assim nos conflitos que existem noutras espécies gregárias como a nossa. A diferença é a escala que nos fez evoluir, da tribo para a civilização. E, subido esse degrau, precisamos de organizar os conflitos, de maneira que tenham o mínimo possível de efeitos colaterais. Numa juventude demasiado distendida no tempo, o principal efeito colateral é a desmotivação, e a desmotivação leva sempre à guerra.
Patrícia nunca se sentiu parte de nenhuma geração. Sempre sorriu com a descrição millenial, feita por terceiros, sobre aquilo que ela era. Ela era a Patrícia e queria descobrir por si própria o que era e o nome que viria a ter no futuro pouco lhe interessava. Pensou em parar de escrever, mas possuída por um outro qualquer espírito corajoso decidiu continuar contra tudo e contra todos. Hoje escreveria como lhe apetecia e sem pensar no número mínimo de likes que o Publisher lhe exigia. Se desse guerra, dava guerra:
Mas voltemos à minha praia, a dos Millennials. É um facto que as denominações predominantes, para cada uma das últimas gerações, vêm do líder da tribo globalista actual, os poderosos Estados Unidos da América. Desde os baby boomers que nos avaliamos geracionalmente como norte americanos, vulgo ocidentais. O curioso no termo millennial é que é mais original, marca uma revolução no calendário, mas também nas relações sociais que a tecnologia, de facto, nos compromete desde os anos 2000. O mundo não mudou, mas a relação entre seres humanos, e as suas influências culturais, mudaram e de maneira muito rápida, continuam a mudar.
O mundo desta praia, onde tudo parece estar ao contrário, é um mundo que nos propõe uma juventude eterna. Podes ser o que quiseres, basta sonhar, basta seres jovem, basta não cresceres, basta não pensares muito, e basta comprar. Tudo se compra quando se é jovem e não se tem quaisquer raízes, esse é o verdadeiro evangelho do nosso tempo, em que os sacerdotes são as figuras públicas que nos tutelam, e a nossa religião é o sucesso. E, se no princípio era o verbo, a acção; no final, será o número de aceitações que definirá o teu sucesso. Podes ser o que quiseres, mas se fores aceite por todos os habitantes do planeta terra, então, sim, és Deus.
A aspiração mais antiga da humanidade, aspirar a ser Deus, é maravilhosa; e isso só é possível com a desorganização hierárquica do mundo que encontramos. Não aceitar o modelo que nos fez chegar até aqui, assassinar os mestres que nos precedem. Ter opinião imediata sobre tudo e mais alguma coisa, comentar comentários, sem ler o que estamos a comentar, é a melhor maneira de chegar a mestre absoluto de nenhuma coisa; e, aqui, começamos a ver a barbatana do tubarão que se aproxima da Millennial Beach. O ritmo da música aumenta e o bicho avança; e, sem que tenhamos consciência, já está, de boca aberta, em cima de nós.
Há anos que me relembro de um documentário sobre uma Comuna Hippie, algures na Áustria, durante os anos setenta. Um grupo de utópicos invade uma propriedade rural, e decide instaurar nela uma nova sociedade. Ninguém tinha propriedade sobre nenhuma coisa, o dinheiro era proibido, ninguém mantinha monogamias e mesmo os filhos tinham paternidade colectiva. O curioso é que, nesta experiência, o líder era entrevistado, anos depois do acontecimento, que tinha terminado pelo seu próprio cansaço e desistência. Porque, queixava-se ele, o sexo passou a ser a moeda de troca; e ele não aguentou mais os constantes subornos que lhe eram oferecidos, e a que ele tinha de aceder e cumprir.
Sem organização, sem hierarquia, como nos lembra o documentário. Numa juventude constante, com o assassinato de todos os mestres, só nos resta o que o tubarão grita, de bocarra aberta, para a praia Millennial, Venham para dentro de água, que aqui não há Deus nem Chefe!