Morada de Flamignon

por Comunidade Cultura e Arte,    19 Setembro, 2018
Morada de Flamignon
Fotografia de Luigi Ghirr
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[Era uma casa velha, sim, com aquele cheiro espesso. De resto, muito bem mobilada. Um pequeno hall com um cadeirão, tapete redondo em tons castanhos, uma máquina de costura fechada – móvel arriscado, mas de gosto requintado – e sobre o móvel uma pequena jarra com flores secas.]

O professor metia-se a caminho por um passeio estreito, escuro. Na estrada alguns funcionários da Câmara tratavam da higiene da rua. Flamignon e sua mãe seguiam o passo mais ou menos desajeitado do professor.

– Desculpem não falar, mas não gosto de falar para trás. Quando o passeio for mais largo…

O coração de Flamignon parecia poder rebentar. Na sua cabeça repetia com insistência a frase do professor, que graças ao Flamignon recupero de um banquete, qualquer coisa do género. Agora mais confiante do que nunca no que escrevera – e era ainda um esboço, imagine-se! – Flamignon mal podia esperar por ouvir o que o professor diria sobre o seu trabalho.

Chegaram a um cruzamento movimentado, mas com os semáforos dando autorização a que passassem os nossos heróis. Tudo parecia organizar-se ao gosto do professor, como se tudo estivesse ensaiado e Agostinho cumprisse marcação. Suspendeu um pouco os passos, só para que Flamignon e sua mãe o alcançassem.

– É ali que moramos, professor, no último andar.

O rapaz esticava o braço para o número 132 da Rua do Patrocínio, mas o professor não deu ao gesto importância. Com a urgência dos passos, puxava Flamignon e sua mãe. Finalmente, o professor pára frente a uma montra em tons verdes. Um toldo negro indica que ali se vendem livros. De facto, bastava olhar: um conjunto de livros para o público infantil povoava a montra: Astérix, Tintim, um tal de O Grande Livro das Borboletas.

– As suas considerações sobre a memória, meu caro amigo, são interessantes…

– Muito obrigado professor.

– Mas um pouco ingénuas, devo dizer-lho.

– Ingénuas?

– O meu amigo, com o seu texto, parece acreditar que a ilustração do pensamento é exercício mais interessante que o pensar de facto. A prova disso é que a leitura do seu texto nos remete para a poesia medíocre mais depressa que para a filosofia. Mas não acredito que seja essa a sua natureza. Não querendo induzir o meu amigo em equívocos, creio que o seu ímpeto é filosófico e não poético ou literário – literário, assim é que é. Compreende o que digo? Consigo ver que o meu amigo pensa melhor do que escreve. Dificuldade esta que seria uma característica comum – faz parte do quotidiano de todo o homem ou mulher que pegou numa caneta para apontar uma ideia – digo, seria uma característica comum a todos se por aqui pensasse a gente.

– Mas então não gostou do que escrevi?

– Muito pelo contrário: deliciei-me. Não creio, no entanto, que esteja no caminho certo no que diz respeito à exposição do pensamento. Consigo ler as ideias submersas neste aparato literário, por isso sei que há um fundo interessante no que se propõe a escrever. Só não percebeu ainda qual o seu assunto, qual o objecto da sua reflexão. Mas para isso estamos cá nós…

O professor aponta para a mãe, procura no seu olhar cumplicidade. A mãe está, indiscretamente, alheia a toda a situação, o olhar posto numa abstracção.  

– Tudo bem?

Como que despertando, calmamente – Tudo bem, professor.

Agostinho suspende por um momento o olhar sobre a mãe. Estava como se visse mais do que, pelo menos, a mãe desejaria. Depois de um esgar conclusivo, debruçou-se sobre a montra.

– Já não via um destes há séculos.

Aponta para um exemplar de Le tour de Gaule d’Astérix.

– Achava tanta graça… Esta minha relação com um signo do já passado não lhe provoca nenhum género de reflexão, Flamignon?

– Confesso que neste momento não consigo… Bom, estou a pensar noutra coisa, professor.

– Ficou perturbado com o que lhe disse?

– Sim… Pensava que tinha gostado do meu rascunho.

– Mas eu gostei, caro amigo. Sabe o que é o critério do cavalo, com certeza. Estou a exigir de si o que sei que me pode dar. Quero que apure – porque me parece que também o deseja. Repare, a propósito do que escreveu na Força do Desábito, diga-me onde coloca a sua mãe.

O professor tinha puxado Flamignon para perto de si, os dois estavam encostados à montra. A mãe estava um pouco afastada, tinha acendido um cigarro, depois do olhar de Agostinho.

– A minha mãe?

Flamignon olhou para ela.

– Sim.

– A minha mãe está embrulhada em memórias, professor. No caso dela, as coisas que tento dizer na Força do Desábito ganham maior definição. Repare: em princípio, um homem é algo em função daquilo com que se relaciona. Concordará comigo, imagino: o homem é resultado de um somatório de experiências, a experiência de algo não é senão a relação que criamos com essa qualquer coisa, a experiência da experiência poderá soar redundante, mas também com o experimentar nos relacionamos, não? Bom, a minha mãe… A minha mãe tende a relacionar-se apenas com a memória do meu pai. O meu pai, habitante do Passado, e, mais que do Passado, da morte. Se um homem é aquilo com que se relaciona, a minha mãe, quando procura exclusiva relação com o que está morto, transforma-se numa morta. Naquela velha história do sois pó, e em pó vos haveis de converter… O padre Vieira diz que, nesse problema de se ser coisa viva e morta ao mesmo tempo, a grande diferença do pó que somos quando mortos ou vivos é o vento. O vento anima-nos, dá-nos vida: levanta o pó. Para minha mãe, não se levanta a mais pequena brisa.

– O meu amigo vai pôr-se a citar moralismos cristãos?

– Sei que o professor está a provocar, a proposta do padre Vieira é boa.

– Prefiro a versão do outro nosso amigo: não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada. Mas é um belo texto, não o posso negar. Só não concordo com a certeza do Vieira quando fala do círculo de pó a pó. Não experimento senão a morte dos outros, da minha própria tenho muitas dúvidas.

– Convenhamos que as circunstâncias ajudam a isso.

– Vamos lá, Flamignon, tenho que lhe dar as chaves de um lugar. Como se chama a sua mãe?

– Louise.

– Louise, seguimos?

Continuaram o caminho, até chegarem a um pequeno edifício de esquina feito ruína urbana, as janelas tapadas por grandes placas de madeira, cadeados a prender as portas.

– Agora teremos de ser discretos.

O professor vira à esquerda, pela travessa das Necessidades. Pára em frente da porta 3A, olha em volta: ali mesmo ao lado há uma paragem de autocarros, e uns rapazes conversam enquanto esperam. Vale a Agostinho e companhia que uma fila de carros, oportunamente estacionados no estreitíssimo passeio, os esconde do olhar dos rapazes. O professor dá duas pancadas com o nó dos dedos na porta, depois de uma hesitação dá uma terceira pancada. A casa está completamente devoluta, a janela por cima da porta não tem vidro, faltam azulejos na parede. Flamignon adivinha um monte de entulho atrás daquelas paredes. Louise acompanha passivamente o desenrolar da aventura. Depois das pancadas que o professor deu na porta, ouvem-se passos dados no interior, alguém toca por dentro a porta, faz rodar uma chave e abre-se o portal. Um homem, de camisa com as mangas arregaçadas aparece. É magro, não muito alto, a cara comprida, pêra e bigode negros, como o cabelo que usa mais longo que curto.

– Professor…

Diz, enquanto o puxa para dentro, olhando em torno.

– Eles também vêm.

Flamignon e Louise são puxados para o interior. A porta fecha-se com cuidado, é trancada. Finamente sós, numa sala cheia de escombros, mergulhada na luz branca que entra pelo buraco da janela, e um quadrado desenhado no chão, um alçapão por onde o homem tinha subido, com certeza. O professor avança

– José, obrigado. Há cada vez mais movimento por esta zona.

– É a altura do ano, professor.

– Pois. Bom, apresento-lhe Flamignon e Louise. Este, Flamignon, é José Navarro.

Eles cumprimentam-se.

– Vou apresentar o lugar ao jovem. Em princípio, ele virá cá mais vezes, José, fica com a chave.

Navarro acenou que sim com a cabeça, sugeriu que descessem todos juntos, ficando para trás para fechar a porta do alçapão. Durante muito tempo desceram umas escadas de madeira rangente, e chegaram a um pequeno hall com uma poltrona, um tapete redondo em tons castanhos, um móvel, e sobre o móvel uma jarra com flores secas. Cada uma das quatro paredes tinha uma porta, sobre as portas números baptizam 1, 2 e 3 cada uma delas. Navarro pediu licença, que ficassem à vontade, ele ia escrever, e meteu-se na porta 1, à esquerda.

– Um filósofo, caro amigo, não se dedica só à leitura de filosofia. Para pensar é preciso, antes de mais, viver: experimentar, como dizia. O que lhe ofereço é a possibilidade de o fazer com um horizonte tão largo quanto o que caiba no seu olhar.

Dizendo isto, abriu a porta número 3, que estava em frente. Eles entraram: estantes altíssimas, recheadas de livros enchiam o olhar. Ali dentro, num espaço com pé direito tão alto que não se via o tecto, iluminado por lâmpadas enroscadas a cabos cuja dimensão Flamignon não se atrevia a adivinhar, eles não conseguiam ver onde terminava o corredor, tão extenso se mostrava.

– E este é só um dos corredores. Vamos caminhando.

Era, sem dúvida, a maior biblioteca que Flamignon já tinha visto. A mãe parecia, surpreendentemente, alheia – como se a biblioteca não a impressionasse. Enquanto caminhavam, Flamignon lia os títulos em algumas das estantes.

– Professor, o que é isto?

– Isto é uma biblioteca, meu amigo. Somos uns quantos conhecidos: juntámo-nos e reunimos aqui todos os nossos livros, os livros que tínhamos em casa, digo. Há muito exemplar repetido, coisa que não adivinhávamos dar tanto jeito. Para além dos livros, neste lugar, o meu amigo tem a possibilidade de se cruzar com umas quantas mentes brilhantes. Gente de cá, e amigos que decidiram trazer de longe a sua biblioteca pessoal.

À medida que avançavam, as estantes pareciam subir cada vez mais. Era impossível, neste lugar, conseguir definição ao olhar para os títulos dos livros. O cheiro a papel velho penetrava as narinas dos três. Flamignon não sabia para onde olhar, mas tinha ficado preso na altura das estantes. Enormes escadotes eram repetidos a cada dez metros. Carros cheios de livros por arrumar estavam espalhados no corredor. Por vezes davam com um cruzamento, e viam autênticas avenidas cruzar-se com uma principal. Ao longe, podiam ver, havia gente que caminhava, outros que andavam de bicicleta.

A certa altura, Agostinho tirou do bolso a carteira, da carteira um papel, examinou-o e avançou decidido. Parou em frente a um 7 dourado, aparafusado à extremidade de uma das estantes, olhou para cima, tentando encontrar a letra que dá nome ao andar na estante: t.

– Flamignon, vou indicar-lhe: quando procura um livro em particular, diz o nome ao José, ele dar-lhe-á um papel igual a este. Escreverá uma indicação em numeração romana, que pode encontrar depois desenhada no chão, seguida de um algarismo, que pode encontrar sempre na extremidade da direita em cada estante, depois uma letra ou combinação de letras, que indicam o andar na estante, um traço e o código do livro. Percebeu?

– Sim.

– Claro que aconselho a que se perca, sim? Experimentar, afinal…

– Claro.

– Escolhi de antemão um livro para a sua mãe. Pode ir buscar?

– Posso, claro, professor.

– Aqui está.

Passou para as mãos do rapaz o papel: I 7t – DIA.geo podia ler-se escrito com uma caligrafia pouco cuidada. Flamignon subiu no escadote bambo. Agostinho e Louise olhavam cá de baixo. A fila t fica a cerca de vinte vezes meio metro, portanto Flamignon usou o escadote para subir dez metros. Encontrou o livro: um livro de capa dura preta, empoeirado, com certeza pouco lido. No meio da atrapalhação, acabou por não ver do que se tratava, e desceu.

Chegado cá a baixo, o livro passou para as mãos de Agostinho, que confirmou o título, e passou a Louise.

– Espero que lhe dê algum ânimo.

Louise grita, ao ler a capa. É um diário de Georges, o pai de Flamignon.

– Também ele doou alguns títulos.

Flamignon debruça-se sobre a mãe.

– Professor, o que quer tudo isto dizer?

– Hoje é tarde, meu amigo. Amanhã encontramo-nos por aqui. A chave… Agora vão andando, também tenho que me despedir. Sigam sempre em frente, não se perderão.

E dizendo isto, o professor afastou-se. Flamignon e Louise levantaram-se, começaram a caminhar no sentido que lhes fora indicado. Caminharam durante uns bons cinco minutos, sempre metidos num corredor imenso de livros. Ao fundo, um conjunto de luzes começou a brilhar. E tão natural como o dia se faz noite, o chão fez-se alcatrão. Estavam em frente ao número 132 da Rua do Patrocínio, no meio da estrada. Flamignon olhou para trás, mas o único vestígio da biblioteca era um exemplar empoeirado nos braços de Louise.

Texto de Guilherme Gomes

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