Mudanças
” But I don’ t want confort. I want poetry, I want danger, I want freedom, I want goodness, I want sin.’ ’In fact,’ said Mustapha Mond, ‘you’re claiming the right to be unhappy.’ ’All right then,’ said the Savage defiantly, ‘I’m claiming the right to be unhappy.’
Aldous Huxley, Brave New World
A tarde cobre a cidade com um azul limpo, de um optimismo quase insuportável. Nestas alturas fica mais fácil reparar na beleza do que sempre esteve à nossa frente. Tudo se pode revelar com um simbolismo inesperado e inusitado. Inoportuno, até. Por exemplo, estes três camiões que sossegam num largo deserto, postos em descanso num paralelismo imaculado. São apenas camiões, mas todos ostentam, em letras grandes e inequívocas, a mesma palavra: “Mudanças”. E sabemos que falam de um serviço, de algo específico e funcional. Só que agora, nestes dias, uma palavra pode ganhar proporções de vida. E ganha.
Mudanças. Sei o que fazem estes camiões: trasladam interiores de casas, móveis, livros, artefactos. Mas sobretudo memórias e esperanças. Tristeza, por vezes: “home is so sad”. Mudanças. Pouco antes do estado de sítio em que nos encontramos também eu tive de recorrer a estes veículos que nos transportam muito do que somos em caixotes almofadados e etiquetados. A tão pouco se pode resumir a nossa vida, nestas alturas. Uma palavra, um rótulo, uma indicação. Mudanças.
E mudamos, outra vez. Estranhamente regressamos a esse fenómeno cuja inevitabilidade sempre encarei com melancolia. O familiar é-me mais caro. Sei que tenho de mudar mas sempre com o compromisso, com a preservação do essencial que me acompanhou. Agora mudamos todos, obrigados a isso mesmo. Não o essencial da nossa natureza, que receio permanecerá a mesma; mas os hábitos, os gestos, os jeitos. “A vida verdadeira é vivida quando ocorrem as pequenas mudanças”, sussurra-me agora Tolstoi. Pois sim. Mas aceitando-as tenho medo porque tenho medo da partida, quase tanto como necessito dela. A mudança agora acontece em forma de matrioska, da maior à mais ínfima, do mundo até à nossa alma. Estaremos preparados? Estarei preparado, eu?
A resposta é a do costume: não sabemos, não sei. Terei de lidar com ela, isso é certo. E ao mudar, mudo para onde? Quero ir ou quero voltar? No diálogo que aparece em epígrafe pode estar uma parte da resposta para este também admirável mundo novo: venha a bondade, o pecado, o perigo, a liberdade, a poesia. Talvez isso, talvez mudar seja também reclamar o direito a ser infeliz, como afirma o personagem. Talvez.
Os camiões continuam parados mas sei que irão regressar à estrada. Mudanças, lembrarão a quem os vir passar. E a mim, que mudando irei insistir numa vontade imprudente de ser feliz.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.