Na era da intolerância

por Maria Mendes Vasconcelos,    14 Junho, 2025
Na era da intolerância
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Quando a cultura sofre, é a liberdade que sangra. Num tempo em que a intolerância impera, as artes são o último reduto da empatia, do pensamento livre e da humanidade.

Vivemos tempos atípicos, em que a violência deixou de ser apenas um fenómeno distante, confinado a ecrãs e estatísticas. Tornou-se pessoal, próxima, quase banal. Prova disso é o brutal e incompreensível ataque de que foi vítima um ator da companhia de teatro A Barraca, espancado à saída de um espetáculo, em pleno centro de Lisboa. Não foi um acaso. Foi um ato de ódio gratuito, dirigido a alguém que representa aquilo de que hoje mais precisamos e, paradoxalmente, mais desvalorizamos: a cultura.

Os dados oficiais não enganam e mostram que vivemos um momento que nos deve inquietar. O Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) revela que, em 2023, houve um agravamento da ameaça ligada aos extremismos políticos, sobretudo de extrema‑direita, com um forte aumento da atividade de grupos neonazis e identitários que retomaram ações de rua e reforçaram a sua presença online, atraindo sobretudo jovens. Ainda segundo o mesmo relatório, os crimes de ódio cresceram 38% em 2023, registando-se um preocupante recrutamento de menores, muitos abaixo dos 16 anos, para ideologias extremistas na internet. Estes números mostram que o caminho político-ideológico para a violência está a ganhar terreno, a alimentar o medo e a normalizar inequivocamente os discursos de ódio.

A pergunta que nos resta não é apenas “como chegámos aqui?”, mas “como reagir?”. Será que reconhecemos na cultura uma ferramenta de transformação social e educação? Ou rebaixamo-la a mero entretenimento numa época em que o consumimos de modo instantâneo e irrefletido?

A cultura e as artes são essenciais não apenas porque nos entretêm ou nos emocionam, mas porque nos transformam. São instrumentos profundos de desenvolvimento humano e coletivo. Através do teatro, da literatura, da música, do cinema, aprendemos a olhar o mundo pelos olhos dos outros, a reconhecer histórias diferentes da nossa, a acolher a complexidade da vida com mais empatia e menos julgamento.

A arte ensina-nos a pensar, a dialogar e a questionar. Uma sociedade que valoriza a cultura é, invariavelmente, uma sociedade mais livre.

Este episódio também traduz um ataque simbólico à liberdade de expressão, à arte, à diversidade de pensamento. A cultura, o teatro, a educação — são estes os grandes antídotos contra o fanatismo, a ignorância e o medo do próximo. Mas quando os nossos artistas passam a ser alvo de violência, estamos diante de um sinal claro: estamos a falhar enquanto comunidade. Estamos a permitir que a intolerância se infiltre silenciosamente por entre as brechas da apatia e da indiferença.

A resposta a esta deriva não pode ser o silêncio. Urge o reforço dos pilares civilizacionais que sustentam uma sociedade livre e plural. Investir na educação crítica, apoiar as artes e proteger os espaços de criação e pensamento é, hoje mais do que nunca, um imperativo democrático. Não podemos continuar a encarar com naturalidade o crescimento da intolerância, nem assistir com indiferença ao enraizamento do discurso de ódio. O risco maior é habituarmo-nos.

A arte é, por definição, um espaço de fricção — e é essa fricção que nos permite a todos crescer, livres de pensamento e insubmissos ao medo.

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