Na hora da vacina são os adultos que se portam pior
Cada vez que chega a altura de levar uma vacina, vem-me à memória uma das vezes em que fui levar uma quando tinha os meus seis anos. Como qualquer história com graça da minha infância, tem sempre a mesma personagem a acompanhar-me: o meu avô. Foi ele que na altura me levou ao centro de saúde da pequena vila onde residia. Enquanto esperávamos os dois sentados ao lado um do outro na sala de espera, iam chamando as outras crianças. Algumas saiam a choramingar ou faziam sinal de não quererem ir, antes de entrar, supostamente com medo da agulha. As mães que as acompanhavam, umas mostravam pulso firme e outras mostravam desespero. Lembro-me que olhava para aquilo com alguma lástima e até com algum receio, mas sem grande pânico. Devia ser a única criança na sala acompanhada pelo avô, mas isso só trazia mais valias. No meio do espetáculo que assistíamos, virou-se para mim, com aquele seu ar assertivo e, admoestando com o dedo no ar, disse-me:
— Escuta o avô, quando te chamarem vais entrar e portas-te como um homem! Aquilo não custa nada.
Hoje esta é uma frase que é considerada algo sexista, a questão de “Porta-te como um homem”, mas na altura encarei como se fosse “porta-te como uma pessoa crescida, porta-te bem” e não num sentido mais viril, até porque era demasiado ingénuo na altura para levar as coisas por esse caminho. Provavelmente se fosse com a minha irmã, que embora mais nova sempre teve muito mais sangue frio para estas coisas do que eu, a frase seria quase idêntica com a parte do “vais entrar e portas-te como uma senhora” a diferir. São expressões algo obsoletas que por norma têm um sentido pejorativo dadas as circunstâncias em hoje que são ditas, mas que no fundo possuem outra conotação quando são proferidas pelas gerações mais velhas aos mais novos.
Quando chegou a minha vez, entrámos os dois na pequena sala e as duas enfermeiras com jeito para a coisa perguntaram-me o meu nome, quantos anos tinha, quais eram as minhas brincadeiras preferidas, e todas essas coisas só para me sentir mais confortável. Subi para a maca e arregacei a camisa, olhei de frente onde estava o meu avô de pé, mas mais afastado. A enfermeira mais experiente fez com que nem notasse que tinha levado com a agulha no braço. Deixou um pouco ao ar e alguns segundos depois colocou um pequeno penso no braço e ficou tudo bem.
— Pronto, já está. Vês? Portaste-te muito bem. – disse a enfermeira
De facto, já estava e tinha-me portado bem. Mas nas alturas em que me devo portar bem, estrago sempre tudo no fim e acabo por me portar mal. E por sorte não estraguei tudo. Quando me deram sinal que podia voltar a desarregaçar a manga e já me estava a preparar para descer da maca, senti uma enorme comichão no braço na zona onde tinha levado a vacina. Lembro-me que a comichão era insuportável, de tal maneira que quis mesmo coçar-me.
— Ai, tenho comichão! – disse eu num tom algo sofrível
Quando estava prestes a colocar a mão no braço para me coçar, as enfermeiras viraram-se para mim, proclamando em tom de pânico como se estivesse quase a cometer um crime.
— Não coces! Não coces!
E eu, assustado, olhei novamente para o meu avô que abanava a cabeça e ria-se. Para quem se estava a portar tão bem tinha acabado de borrar a pintura com algo que não dava para acreditar que viesse acontecer. A enfermeira mais experiente explicou-lhe que se tratava de uma pequena reacção que podia acontecer em certos casos, tendo em conta a vacina que me estava a ser administrada. A outra enfermeira ficou ali um pouco comigo a ver se a tal reacção passava, evitando que eu sacudisse muito o braço. Ainda assim, quando chegámos a casa, o meu avô fez questão dizer aos meus pais que me tinha portado muito bem, esquecendo o episódio da comichão no braço, porque não passou mesmo de um pequeno azar.
Uma situação pandémica fez-me voltar novamente ao centro de saúde na pequena vila, onde ainda tenho a minha área de residência. Desta vez sou crescidinho, e vou sozinho no meu carro. O centro de saúde é outro, com instalações mais modernas enquanto o antigo foi reabilitado para outras funções. Os médicos são outros, as enfermeiras são outras, o pessoal técnico é outro e a última vez que ali estive foi há uns anos para renovar a minha vacina do tétano. Tal como muitas pessoas agendei a vacinação pelo site do Serviço Nacional de Saúde, e respondi afirmativamente a mensagem. O sistema é outro dadas as circunstâncias. Na hora de me ser administrada a vacina, a enfermeira disse-me os possíveis efeitos que poderia ter, “inchaço no braço, alguma febre, algumas dores…”, no fundo nada de mais. E mesmo que me desse aquela comichão no braço que me deu quando tinha seis anos compensava o facto de as probabilidades de apanhar o vírus serem agora muitíssimo mais reduzidas. Mas há quem ache que o mal de tudo isto não está no vírus. Está nas vacinas.
Existem pessoas que, na hora da vacinação, precisavam de um avô ou de uma avó ou de alguém mais velho que lhes dissesse para se portarem com juízo. Não haja dúvida que hoje em dia há adultos que se comportam como crianças quando chega a hora de serem vacinados, fazendo com que as crianças pareçam seres maduros e conscientes, a começar pelas histórias que por aí se contam. Contam-se histórias de que as vacinas têm microchips do Bill Gates como se o próprio não tivesse mais nada que fazer do que explorar as nossas vidas tão aborrecidas e banais. Que as vacinas alteram o nosso DNA, como se nos fossem crescer asas ou barbatanas, o que até seria um passo acelerado na nossa evolução como espécie. Que as opiniões do A, do B e do C que vagueiam pelas redes socias são muito importantes e parecem valer mais do que números e dados científicos que não podem ser mascarados. Que as pessoas vacinadas emitem redes 5G, o que é uma pena porque dava para poupar em dados móveis. Que a vacina gera campos magnéticos, que colam moedas e talheres ao corpo, como se agora nos tornássemos ímanes de frigorífico. Que as distopias Orwellianas são uma realidade e que as restrições que nos são impostas com o fim de salvaguardar a saúde de todos nós fazem com que vivamos em ditadura, quando grande parte de quem o diz nunca leu George Orwell nem sabe qual o verdadeiro conteúdo por detrás das suas obras. Conta-se tudo e mais alguma coisa, menos aquilo que realmente importa.
Devia-se dar mais atenção por exemplo do número de mortes que desceu drasticamente e das vidas salvaguardadas tudo graças à vacina e a algumas medidas restritivas que visam salvaguardar a saúde de todos. Embora tais medidas possam parecer um pouco exageradas, em certos aspectos, não podemos cair na velha questão de que agora vivemos numa ditadura. Em menos de um ano conseguimos várias vacinas de vários laboratórios, cada uma com os seus prós e também com os seus contras (em determinados casos), sendo esta a prova de que a ciência continua a ser indispensável à nossa subsistência. Temos de dar graças por as vacinas serem gratuitas e distribuídas equitivamente, dando prioridade aos mais velhos e às pessoas de maior risco, mas sem fazer distinção das condições sociais, das crenças, das ideologias políticas ou até mesmo da preferência clubística de cada um. Gerir um plano de vacinação é sempre algo bastante complicado, ainda para mais numa situação urgente no combate a uma pandemia. Factores logísticos, por exemplo, têm vindo a fazer com que este plano seja mais lento do que o espectável e isso será algo que esperemos que seja, entretanto, melhorado.
Obviamente que este é um caminho que não é de todo linear, e tem inúmeros obstáculos por contornar, mas há quem ache que inventar historias e contos surreais ajuda a que regressemos ao quotidiano normal que tínhamos antes do vírus ter aparecido. Casos de reacções após a vacinação existem e são ligeiros. Reacções adversas e fatais, que se tratam de casos raros e excepcionais, colocam logo tudo em causa para certas pessoas e vem à baila o velho cliché do “não morremos da doença, mas vamos morrer da cura”. Gera-se desinformação, julgamentos precipitados, e toda uma panóplia de histórias sem sentido, que faz com que a vacina deixe de ser vista como uma solução benévola para todos e seja vista como algo vindo do profano. Ao que parece, na hora da vacina, alguns adultos conseguem portar-se pior do que crianças, deixando-se levar por argumentos falaciosos e demagogias baratas, e acreditando em histórias que, ainda para mais, nem a mais ingénua das crianças acreditaria.