Na outra margem da palavra
“What matters is precisely this; the unspoken at the edge of the spoken” – Virginia Woolf
Em pouco mais de uma dúzia de palavras, Virginia Woolf dissecou não apenas a poesia, ou a literatura, mas o próprio segredo das relações humanas entre si e com o mundo. E porque a literatura, como escrevia Drummond, é transparente à própria vida, difícil seria separar tal ideia do berço em que nasceu. Mas, como resolver este paradoxo? Como é que se explica que, em literatura, a potência mais eloquente é, exatamente, não aquela que disse mas aquela que deixou por dizer?
Imaginemos, então, um cenário:
Leitor A e Leitor B encontram-se num café e pretendem discutir interpretações de um livro que ambos leram em simultâneo. Ora, visto que o leitor A e o leitor B são pessoas diferentes, com experiências de vida distintas, dificilmente poderíamos admitir uma apreciação literária semelhante por parte de ambos. Onde o indivíduo A lê árvore, lê também as memórias de uma certa casa de Verão, uma casa onde, em pequeno, se deliciava com pêssegos sumarentos que tal árvore fazia nascer, memórias então confinadas à névoa difusa das páginas do tempo. Já o nosso leitor B, no lugar da árvore, recorda uma figura maternal, espectro meio cinzento e que com o passar dos anos inexplicavelmente desapareceu. Ambos os leitores se viram transportados para a sua relação com o passado, mas a palavra que evocou tal transporte permaneceu sempre a mesma: árvore. Com este breve parágrafo pretendi defender aquilo que agora pode estar mais explícito: cada leitor escreve o seu próprio livro no livro que lê. Impossível alterar a ordem natural das coisas.
De tal modo isto acontece, que o próprio escritor deve atentar à simplicidade da forma, ao respeito pelo silêncio cúmplice ou, por outra, àquilo que os ingleses chamavam de writing in the bone. Talvez por isso um Cesário tenha escrito ao seu amigo, Silva Pinto, a célebre frase “Sê natural, meu amigo, sê natural”. E impossível não nutrir ternura por este Cesário, um rapaz que às portas da morte roga a seu fiel amigo que execute a destruição de sua obra (pedido que felizmente nunca foi cumprido). E, quem diz Cesário, diz Kafka, outro jovem moribundo que suplica a Max Brod a queima de seus manuscritos. Se amor é fogo que arde sem se ver, Max Brod sentiu exatamente isso quando decidiu não ver arder o fogo que destruiria uma das mais importantes obras do século vinte: isso é amor. Talvez o amor que o cão Argos sente ao presenciar a tão esperada vinda de seu amo, Ulisses, ou talvez o amor que leva Aquiles a umas das maiores fúrias que a literatura já testemunhou: a fúria consequente da morte de seu companheiro, Pátroclo. Não me querendo desviar muito, o importante a realçar é a partilha de um quarto comum, de uma passagem para “o outro lado” que a literatura fornece.
António Pedro, no seu protopoema da serra d’arga, escreve a certa altura: “Porque a poesia não está naquilo que se diz/ Mas naquilo que fica depois de se dizer”, e com isto lanço aqui um autor português que, embora não tanto conhecido, coopera com Virginia Woolf quanto àquilo que a literatura contém de mágico: o que fica por dizer. A compreensão do desconhecido, o abismo que, apesar de meu, nosso. E porque a literatura age no individual de forma a unificar o coletivo, não poderia negar que já muitas vezes me senti a barata de Kafka ao acordar de manhã, outras vezes um certo Dante descendo aos círculos do inferno em busca de Beatrice. Quem não? Afinal de contas, o que interessa é mesmo isto: que existam coisas impossíveis de explicar, que existam chaves e mais chaves e que essas chaves abram quartos que nunca pensámos vir a conhecer, mas que algo dentro de nós pede: “mais”. Talvez um menino assustado, talvez um Vasco da Gama explorador e sedento de novas águas. Mas daqui para a frente já sei, e tenho a agradecer a Virginia Woolf. De resto, quando alguém me pedir opiniões sobre livros, ou intentar algo contra a preservação do mistério literário, responderei apenas: “Procura-me na última porta antes da noite”, esperando com esta afirmação não acabar uma amizade.
Crónica de Lourenço de Almeida Duarte
Lourenço de Almeida Duarte é estudante de Literatura na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.