Não é só de geeks que se faz a Web Summit
A Web Summit chegou há três anos a Lisboa e aqui irá manter-se até 2028. O início de Novembro torna-se assim prolífero em opiniões, artigos, crónicas aguerridas cheias de revirar de olhos ao pré-conceito que têm sobre o evento que, ano após ano, traz a Lisboa milhares de pessoas. Uma parte substancial da Web Summit, e porventura a mais conhecida, são os milhares de start-ups que buscam investimento e reconhecimento, que tentam oferecer aquele-serviço-que-ainda-não-sabíamos-que-precisávamos e que querem ser unicórnio. Depois de unicórnio não sei muito bem que se passará, mas a verdade é que 90% das start-ups que se apresentam na Web Summit não irão, muito provavelmente, tornar-se empresas de muitos milhões de euros. Muitas oferecem serviços que já existem, mas com melhorias, com uma ou outra interface mais intuitiva, mais fiável, menos fiável. Umas optimizam o nosso tempo, outras o nosso fluxo de trabalho, outras a nossa protecção de dados, outras a forma ultra-rápida de fazer uma coisa qualquer, no meio de stakeholders, equity, pitch, resources, engagement, knowledge, CEO, CMO, CTO, IPO, e um sem-fim de estrangeirismos que qualquer pessoa, que não esteja imbuída do espírito empreendedor desenfreado, não domina.
A relação entre a tecnologia e o modo como vivemos não é de todo estranha, chegando até a ser tão natural que já nem nos lembramos que tudo o que temos, desde o telemóvel ao despertador, já foi apresentado numa qualquer web Summit desta vida. A tecnologia é tão natural que nem barafustamos com o facto de a utilização que fazemos da tecnologia, todos os dados que usamos e criamos através dela, todas as fotografias, geolocalizações, páginas que vemos na Internet, gostos e comentários a uma ou outra foto no Instagram, serem perfilados e transmitidos em bloco, processados, e transformados em lucros das empresas que nos permitem ver o que os nossos amigos fazem nas férias sem que tenhamos de falar com eles. Foi justamente sobre este (ab)uso de informação, que damos sem pensar a grandes empresas, que Edward Snowden falou, em directo da Rússia onde se encontra exilado, na sessão que inaugurou a edição deste ano da Web Summit e que declarou que “não são os dados que estão a ser explorados, são as pessoas que estão a ser exploradas e não são os dados e as redes que estão a ser influenciados e manipulados. Somos nós que estamos a ser manipulados.” Pode parecer algo paradoxal que alguém que condena a utilização desenfreada e desregulada dos nossos dados abra e seja um dos nomes mais esperados da Web Summit, que recebe muitas destas mesmas empresas. Mas a verdade é que precisamos de estar cada vez mais cientes que a nossa privacidade é fornecida voluntariamente a empresas e, se tudo correr mais ou menos como se espera, este pequeno-grande ponto terá cada vez mais importância na forma como usamos tecnologia de consumo.
É verdade que se fala muito de unicórnios e existem plataformas elevatórias para o nosso pitch na Web Summit, mas também se fala do problema da escassez de água, numa conferência em que Jaden Smith era o nome mais conhecido, e na forma como a tecnologia pode ajudar em situações limite, nomeadamente em Flint, Michigan, uma cidade que vive com água contaminada há 20 anos. É verdade que se fala muito em robots, mas também se falou dos problemas de fome em regiões pobres da Índia, no programa que dá refeições a crianças na Índia (foodforeducation.org) e na sustentabilidade alimentar ao nível mundial. É verdade que se fala muito de realidade virtual e aumentada, mas também se fala muito na protecção ambiental e dá-se voz ao que é feito em Sumatra, Indonésia para evitar a extinção de espécies (HaKa.or.id).
É verdade que fala na automatização, mas também se fala na importância da educação em muitas profissões, nomeadamente no desporto de alta competição, onde existe pouco acompanhamento profissional e, fundamentalmente, pouca educação. Foi no palco SportsTrade que Eric Cantona falou sobre a importância que o futebol tem no mundo, sobre como não compreende que existam cânticos racistas ou como desportistas de alta-competição apoiam causas extremistas, quando grande maioria deles veio de contextos desfavorecidos. Porque é necessário educar, Eric Cantona apresentou a CommonGoals.com, co-fundada por Jürgen Griesbeck, que tem 200 membros do mundo do desporto com o objetivo comum de angariar 1% do rendimento destes para ajudar ONG, para apoiar causas falar sobre educação em zonas desfavorecidas, promoção da paz pelo desporto e redução das desigualdades. Porquê o futebol? Porque, segundo Cantona, “o futebol não quer saber quem és, de onde vens, tudo o que interessa é o que fazes no campo”, seja ao nível profissional, amador ou nas partidas de futebol em cidades como Medellín, na Colômbia, onde guerrilheiros encostam as armas para jogarem futebol.
A Web Summit é mais do que tecnologia, mesmo que só ouçamos falar disso. Se trazer problemáticas que confrontam a sociedade, e que são de resolução urgente, para o meio de investidores, criadores e empreendedores fizer com que a tecnologia se desenvolva para sanar as mesmas, então a Web Summit já será justificada. Se quisermos manter o típico “e então, mas” (ou, em estrangeiro, “whataboutism”) que gostamos de usar para condenar tudo o que é feito em Portugal, também podemos, mas não é todos os dias que temos Tony Blair, Edward Snowden, Eric Cantona, Jaden Smith, Margrethe Vestager, entre muitos outros, a abordar questões emergentes e flagrantes da sociedade. Se quisermos ridicularizar a já de si ridícula quantia dada por camisolas tricotadas à venda no balcão de merchandising, também podemos, mas que dediquemos também algum tempo a ouvir e a conhecer o que por lá se fala. Porque, como Katherine Maher (CEO da Wikipedia) disse, “não acredito que estejamos numa crise de conhecimento, mas sim numa crise de confiança” e é com informação e educação que a ultrapassamos.