Não esquecer: PIDE
A compreensão da importância histórica de abril, enquanto marco simbólico que trouxe direitos, liberdades e garantias ao povo português, não pode dissociar-se da análise do funcionamento da PIDE, uma das armas repressoras do Estado Novo. Devemos firmá-la na nossa memória coletiva, nomeadamente numa época em que alguns, na esteira de saudosismos, pugnam pelo regresso de práticas de tortura e por uma justiça mais punitiva.
Salazar sabia que esta polícia era crucial para a manutenção do regime, permitindo o controlo da sociedade, das empresas, do funcionalismo público e dos sindicatos.
Ora, o controlo começava na escola, com o professor, na Igreja, com o pároco e na empresa, com o patrão. Os tentáculos da polícia do Estado eram inescapáveis e estendiam- se aos quartéis, aos bairros, aos escritórios, às oficinas, aos correios e às universidades. Além disso, contava com a colaboração das Forças Armadas, da Legião Portuguesa e de todas as estruturas do regime, bem como do seu aparelho distrital e local.
Num contexto destes, só aqueles que se dispunham a transgredir o sistema é que exigiam a intervenção direta da PIDE. Em Portugal, o fascismo assentava na contínua desmobilização social e política. Logo, só uma minoria — a que tinha um nível de consciência e de determinação muito elevado — se atrevia a infringir o status quo.
Salazar resume esta ideia numa frase: O meu ideal é fazer viver as pessoas habitualmente. O objetivo do Estado Novo não era suscitar a adesão do povo, mas antes promover a aceitação e a submissão. Com efeito, a função dos políticos era pensar pelas pessoas e, evidentemente, anular quaisquer resquícios de espírito crítico.
Uma vez que a modalidade portuguesa do fascismo assentava num Estado que investia na desmobilização, é possível afirmar que a PIDE atuava num contexto muito peculiar, embora a sua natureza fosse idêntica, estruturalmente, à de outras polícias políticas. Note-se que, apesar da especificidade racial do regime nazi, a PIDE compartilhou algumas características com as polícias políticas da Alemanha e da Itália.
Por exemplo, os operários, que não tinham qualquer eco social, eram tratados da pior maneira pelos agentes da PIDE, que os puniam brutalmente por ousarem desafiar a ordem inquestionável. Já tortura do sono era reservada para os intelectuais, pois era um castigo que visava o amesquinhamento da vontade, da dignidade e da autonomia. Enquadravam-se igualmente, nesta última punição, os comunistas, visto que, para o regime, atentavam contra a segurança externa do Estado.
O poder discricionário de que os agentes eram investidos impelia-os a infligir às vítimas indefesas as piores sevícias. O fim último da tortura era, além de desencadear a perda total da vontade, a destruição física, psíquica e moral do preso, possibilitada pelo domínio do carrasco. As fichas da PIDE continham um questionário pormenorizado, em que a única coisa que faltava eram, talvez, referências aos segredos da higiene íntima de cada pessoa. Sublinhe-se o número de documentos existentes em arquivo: três milhões.
A PIDE podia prender qualquer pessoa por seis meses sem culpa formada, ou seja, de forma preventiva (ante delictum). Os cidadãos eram isolados durante semanas e não podiam fumar, receber jornais, livros, correspondências ou visitas.
A solidão absoluta dos prisioneiros era cortada pelos uivos de uma humanidade despedaçada, que ecoavam nos gritos e choros dos altifalantes. Homens marcados com torturas físicas atravessavam as salas de interrogatório para assustar as vítimas, numa antevisão do estado a que chegariam caso não falassem. Para prolongar a tortura, eram administradas injeções de estimulantes, como o Pentotal endovenoso (o soro da verdade).
A PIDE foi simultaneamente dúplice e hipócrita. Os seus agentes não precisavam de recorrer a espancamentos ou a instrumentos perfurantes, mas tinham as vítimas à sua disposição para um sadismo incompreensível. Assim, pessoas sem ligações partidárias, suspeitas de pertencerem a grupos de ativistas, morreram nas mãos dos esbirros.
Foi um trabalho ciclópico o que exigiu o desmantelamento das raízes da PIDE enquanto peça central de um regime oligárquico assente na chefia ultracentralizada de Salazar. É importante que a resgatemos na nossa memória, para que sirva de contraste, e nunca de ideário, ao modelo de justiça democrático. Não esqueçamos que, como escreveu Manuel Alegre: País de Abril é o sítio do poema / Não fica nos terraços da saudade / não fica em longes terras. Fica exactamente aqui / tão perto que parece longe”.