“Não estou na Internet”

por Davide Pinheiro,    17 Junho, 2021
“Não estou na Internet”
Imagem do single “Solar Power”, de Lorde
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Vale a pena examinar Solar Power de Lorde além das aparências e primeiros instintos. A foto precedente da estreia do single deu que falar tanto ou mais do que a canção? Primeira reflexão: estaremos a ficar tão atomizados pela cultura visual que ela passa a ser um fim em si e não parte de uma visão conceptual maior, como é o caso? Qualquer imagem contém em si múltiplas leituras do real, nenhuma é uma representação absoluta. A exposição do corpo de Lorde é deliberadamente provocadora na forma como nos impele a travar o voyeurismo e a questionar tudo aquilo que há de belo na fotografia. O desprendimento, a cor e a alegria. A falta de roupa interior sugere não a desejar o que é íntimo e privado mas antes a pensar tudo aquilo que pode querer dizer um corpo livre. E isso leva-nos a uma canção também ela com propriedades além da subjectividade.

Não é um banho de sol mas também não é um eclipse total Solar Power. As semelhanças com Freedom de George Michael e sobretudo Loaded dos Primal Scream são, de acordo com Lorde, pura coincidência mas as muitas parecenças com o clássico de Screamadelica levou-a a contactar Bobby Gillespie, que aprovou. Ainda assim, o significado está muito para além da musicalidade. É uma canção solar e veranil, sem sinais evidentes de tecnologia que anuncia um álbum, com o mesmo nome. “Uma celebração da natureza, uma tentativa de imortalizar os sentimentos profundos e transcendentes que sinto no mundo exterior”, antecipa Lorde.

Mais uma vez, há que ler os sinais. Uma leitura rápida podia remeter para um apelo ao desconfinamento mas esta é a mesma Lorde afastada das redes sociais desde meados de 2018 por se sentir a perder “a vontade própria”. “Há líderes e há seguidores”, sentenciava Kanye West na profética New Slaves. Lorde escolheu afastar-se da multidão para se recentrar em si mesma e a partir daí voltar a comunicar com o outro sem lhe dar exactamente o que ele espera. Por isso, desafiada pela estação australiana Triple J a comentar os memes criados a partir de Solar Power, a resposta veio sem surpresa e sem medo. “Não estou online”. Uma blasfémia digna de cancelamento ou programa cautelar. Como se atreve Lorde a encher os pés na areia sem usar um filtro granulado ou retro, evocativo dos dias de inocência?
Claro que não estando ligada, Lorde tem quem faça esse trabalho por ela. E que Solar Power desafia não é alheio ao mainstream de Internet. Pelo contrário, desafia-o e à desordem emocional das caixas de comentários, mas dá sinais de cansaço dessa inescapabilidade. A imposição pós-pandémico de que tudo é digital e só pode ser digital, como se estivéssemos presos num túnel de números, seguidores e partilhas em que tudo é algoritmo, análise de dados, NFTs e acções em bolsa é asfixiante. Por isso, é importante uma voz pop de grande exposição não afunilar e mostrar que o outro lado existe.

A tecnologia em geral, e a Internet em particular são bens de primeira necessidade mas não é por acaso que nos últimos 15 meses, os jardins invadiram varandas, salas, quartos e estúdios. O tempo é digital, mas também é humano e natural. Inescapável só a coabitação entre homem, natureza e máquina, e se a música ainda tem esse poder de nos abrir os olhos para o que não conseguimos ver a um palmo de distância, então já conseguiu dar luz a uma agenda mediática vulgarizada por banalidades, extremismos e intolerâncias.

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