Não mataram a “Cotovia” de Diana Vilarinho

por Francisco Silva,    5 Junho, 2025
Não mataram a “Cotovia” de Diana Vilarinho
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“Quando vos calam a voz
Daqui respondemos nós”
— Joana Alegre

E assim entrelaçam-se as tranças de Diana Vilarinho, num gesto de passagem de experiências, histórias e lutas — as de Simone de Oliveira — agora ajustadas a mais um dos traços que a sociedade impôs, ao longo dos tempos, à figura feminina: o cabelo. As tranças, aqui, não são ornamento, mas arquivo. Cada fio tecido é também um gesto de lembrança, uma forma de guardar o que as vozes eternizaram.

Os nós firmes que Simone marca nos cabelos de Vilarinho carregam uma mensagem clara: neles se inscrevem as rugas das injustiças enfrentadas diariamente pela Simone — e por todas as mulheres que resistiram e continuam a resistir, em tempos que constantemente põem em causa tudo o que as Mulheres corajosamente alcançaram pelas suas próprias mãos.

Na canção de Diana Vilarinho, Ricardo Ribeiro e Joana Alegre, ecoam com mais força e mais encanto os versos de Joana Alegre: “Sem cara lei que mascara / A ferida que nunca sara / Maldade, orgulho, doente / Achar que mulher não é gente.”. São versos que nascem do mesmo país que tristemente transmite em televisão pública mensagens que ousam destruir a autonomia, as liberdades e as garantias fundamentais da Mulher; do mesmo país que elege figuras políticas assumidamente machistas, que poriam lágrimas no rosto de Catarina Eufémia e de Maria Teresa Horta.

Mas a poesia de Joana Alegre resiste. É mais forte e ressoará por mais tempo. Durante todo o videoclipe — realizado por Francisco Fidalgo e Afonso Sousa, com direção artística de Sérgio Onze — Simone não se afirma sozinha. Consigo, cantam várias mulheres com postura irreverente e insubmissa, porque a sua voz nunca foi apenas sua: é a de todas as mulheres que, intransigentemente, continuam a gritar pelos seus direitos num Portugal que resvala para o desencanto político da misoginia.

No entanto, este não é o Portugal da cotovia de Vilarinho — é o da continuidade entre vozes, do gesto que cuida e que recorda — do canto que insiste mesmo quando tentam silenciá-lo. É o Portugal que pôs a poesia na rua há 51 anos, e, principalmente, é o Portugal que ainda acredita que há liberdade por cumprir e que vale a pena cantar por ela.

Finalmente, vêmo-la a trançar os cabelos de uma jovem Mulher. Agora, o seu nó dita-nos que, depois de 51 anos de liberdade, de tantas canções, de tantas cotovias marchantes nas ruas, a luta continuará. Percebe-se, com dor, que a jovem também terá de enfrentar os mesmos desafios de Simone e de Vilarinho.

Esta luta não é apenas poética: é profundamente cívica. Todo o homem que foi amado por uma mãe, irmã ou amiga terá de erguer a sua voz para enfrentar os alicerces que ajudou — ainda que inconscientemente — a erguer numa sociedade patriarcal.

A fadista encara-nos olhos nos olhos, com as marcas que Simone transmitiu para as suas tranças. De rosto cerrado diz-nos, sem palavras: quem apenas observa, é cúmplice.
Não mataram a cotovia de Diana Vilarinho. Cada gesto, cada voz e cada olhar que se recusa a baixar será parte do seu voo.

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