Não matem a cotovia
Não há, aparentemente, motivo nenhum para que isso aconteça. Não o consigo justificar, embora todas as outras causas que promovam nada mais que a igualdade de direitos (feminismo, direitos LGBTQ, etc) tenham o meu total apoio.
Eu não quero uma utopia, eu quero uma realidade. Uma Terra Prometida da integração em que ninguém exerça soberania tóxica, que alimente sentimentos negativos e ações de superioridade desonesta sobre terceiros, suprima as liberdades dos outros apenas pela pigmentação da pele, sotaque, penteado ou por outra característica qualquer.
Com esta mensagem apenas pretendo trazer a discussão para cima da mesa. Para cima da minha mesa de jantar, para cima da vossa mesa de jantar, para a de todos. O objetivo desta discussão, ou de qualquer outra, deverá ser sempre o progresso colectivo. Por progresso, falo primeiramente do assumir que há um problema latente na nossa sociedade. Sem o reconhecermos nunca seremos capazes de progredir.
Não será um trabalho fácil. É um exercício profundamente difícil, doloroso, mas também com caráter de urgência: o da confrontação connosco mesmos. Esse olhar ao espelho para enfrentar todos os medos e demónios que temos dentro de nós, porque os temos, para revermos os comportamentos racistas inconscientes que temos, vai ser um processo complicado. Fazê-lo em família, sem julgamento, mas com a consciência e confronto de uma possível realidade racista dentro de portas.
Para que haja uma reconciliação, quem erra é sempre quem tem de dar o primeiro passo, e aqui não será diferente. Perceber porque é que, consciente ou inconscientemente, muita gente passa para o outro lado da rua quando vê alguém negro a vir na sua direção, porque é que agarra a carteira com mais força quando algum negro se senta ao seu lado no metro, porque é que acha que quando um negro entra numa loja, a vai roubar… Não há que ter nenhum sentimento de culpa ou de vergonha, porque a maioria dos exemplos acima referidos são reflexos e comportamentos inconscientes. O problema reside no reconhecimento dessas atitudes sem uma intenção de as alterar, pois são manifestamente preconceituosas. Um excelente exemplo do que deve ser feito é a publicação do Manzarra sobre o STOP; onde este mostra o poder do preconceito que subsiste no nosso inconsciente. Só que é no processo da aceitação da culpa, precisamente como ele faz, que pode começar o progresso. A somar a isto, está a posição do amigo em que o confronta e o alerta perante um comentário “um bocado racista“ (como o próprio escreve) e que é a atitude que todos devemos tomar quando presenciamos qualquer acto racista.
A Clarice Lispector diz que é preciso ter cuidado com os defeitos que pretendemos erradicar, pois nunca se sabe qual deles sustenta a nossa edificação de valores. O que eu proponho é isso mesmo. Começar a mudança dentro de portas, sabendo sempre que será uma mudança difícil e que muitas vezes, principalmente com os mais velhos, será utopia falar-se em mudança no que ao racismo diz respeito. Mas, se queremos que o padrão de comportamentos seja alterado amanhã, temos de começar pelas crianças de hoje. Pelos filhos, pelos sobrinhos, pelos alunos… Por contar a história tal e qual como ela aconteceu, mostrar os vários lados, e não só o ponto de vista de quem detinha ou detém o poder, como quase sempre acontece.
Começar por lhes contar o que de facto aconteceu na época dos descobrimentos ou no período colonial. Eu aprendi que fomos os bons colonizadores, aqui ou ali falaram em escravatura, mas nunca em tortura, violações ou incontáveis mortes. É preciso pôr o dedo na ferida e contar a verdade dos factos, porque empurrar o pó para debaixo do tapete só nos trouxe ao estado de sítio a que chegámos.
Se se optar pelo silêncio ou pelo não reconhecimento do problema, estar-se-á a escolher o lado do opressor, porque o silêncio é, por si, um luxo e um privilégio. E eu, enquanto membro de uma comunidade, não posso permitir, naquilo que está ao meu alcance, que isto continue a ser escondido e escamoteado.
A mudança parte de mim, de ti e de todos. Estás comigo?
O título desta crónica é inspirado no livro com o mesmo nome e da autoria de Harper Lee.