Não me peçam para ser eu próprio
A par da pandemia que atualmente vivemos, existe outra disseminação que, apesar de fisicamente inofensiva, pode deixar algumas mazelas a nível psicológico. Desde há uns anos para cá, temos vindo a ser atingidos por uma avalanche de novos conceitos que podem ser inseridos em tudo o que dizemos. Expressões como o “amor incondicional”, a “gratidão”, o “viver o agora” ou o “desapego” tornaram-se tão corriqueiras que, devido ao excesso de utilização, arriscam-se a perder o seu valor intrínseco.
Se por um lado é positivo o facto de todos estarmos familiarizados com estes termos, por outro torna-se tentadora uma divagação meramente pelo plano teórico. De nada serve escrever “gratidão” na descrição de uma fotografia, quando nessa mesma manhã não nos sentimos sortudos por acordar. Da mesma forma que podemos já ter lido várias vezes “O Poder do Agora”, de Eckhart Tolle, e ainda assim continuar a cair na tentação de viver no amanhã. Com isto não quero, de forma alguma, desvalorizar a importância da disseminação destes mantras e filosofias de vida. Considero-os muito importantes e é com satisfação que nos vejo, cada vez mais, despertos para temas como estes. No entanto, o que sinto ao conversar, ouvir podcasts ou ler outros textos, é que estes princípios têm, ironicamente, o resultado inverso nas nossas vidas — deixam-nos ansiosos e ainda mais perdidos porque acabamos por perceber que não são assim tão fáceis ou imediatos como nos “vendem”. A verdade é que estas coisas levam tempo e merecem ser encaradas com humildade, respeito e muita paciência. Desenvolver tamanhas virtudes dá trabalho e requer bastante dedicação. Lamento, mas não é meia dúzia de palestras TedX que vão resolver o assunto.
Além das que já referi, existe outra célebre expressão que acaba por ser uma das maiores fontes de angústia. Que atire a primeira pedra quem nunca disse como resposta a um desabado: “só precisas de ser tu próprio”. Sempre que nos sentimos perdidos e sem saber o que fazer, há sempre alguém que nos brinda com esta solução aparentemente milagrosa. Na verdade, compreendo a sensatez deste conselho, mas, na maioria das vezes, a raiz do nosso problema reside exatamente aí: se não sabemos sequer quem somos, como poderemos desempenhar tal papel?
Como referi anteriormente, reconheço a veracidade da afirmação, até porque, à primeira vista, é algo que me parece natural e expectável. No entanto, esta verdade de La Palice tem tanto de óbvio como de complexo. Por isso, pergunto: o que devemos fazer enquanto não soubermos quem somos? Que opção nos resta? Entretanto, o que fazemos à pressão social que sentimos face ao que esperam de nós?
Todo este sofrimento silencioso que raramente sai do espaço entre as nossas orelhas acontece porque, genuinamente, poucas pessoas, depois de retiradas todas as camadas materiais, sabem o que querem e quem são. Isto acontece porque dói deixarmos de estar entupidos de estímulos desnecessários.
Para nos aproximarmos de quem realmente somos, temos de parar de fugir de nós próprios. Depois disso, para quem já conseguiu ver além da cortina e teve um pequeno vislumbre do seu lugar no mundo, as coisas também não se tornam obrigatoriamente mais fáceis. Ser quem somos não elimina automaticamente todos os obstáculos do nosso caminho. Os desafios vão continuar a existir. Alguns deles podem até ser tão aterradores que nos levam a ponderar um regresso à vida anterior. Talvez a principal diferença é que agora estamos no trilho certo. Independentemente da velocidade e dos percalços, pelo menos estamos a apontar na direção correta.
Sem ilusões ou histerismos, vamos cada um tentar dar o melhor que sabemos, pois a mais não somos obrigados. Tudo o que nos resta é experimentar. Procurar viver de acordo com esta essência que nos transporta por este mundo fora. Nunca esquecer quem já fomos, quem somos e que amanhã podemos vir a ser tudo.
É importante procurar amar sem condições, ou pelo menos tentar. Agradecer todos os dias, ou pelo menos tentar. Sempre que o pensamento estiver lá à frente, voltar ao aqui e agora, ou pelo menos tentar. Largar tudo o que já não nos pertence, ou pelo menos tentar, e sermos nós próprios, cada vez mais. Queres tentar?