Não queremos apenas rampas

por Tiago Fortuna,    20 Abril, 2022
Não queremos apenas rampas
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Há algumas semanas estive na retoma dos festivais em Portugal. Que bom é voltar a ver salas esgotadas, pessoas a dançar e sentir a liberdade que a música e a cultura nos dão! 

Nessa noite percebi que nada mudou desde 2019 para uma pessoa com deficiência que participa num evento: tive de empurrar um segurança que veio contra mim porque não me viu; ninguém sabia indicar a entrada acessível (até que entrei por trás do palco); não existia uma plataforma ou zona de segurança para pessoas com deficiência; e, quando quis vir embora, ninguém sabia indicar uma saída além da do palco. Como nesse momento era impossível atravessar essa zona, saí ao colo dos bombeiros, por uma escadaria.

Tudo certo, continuo vivo, mas estamos em 2022. Portugal tem 17% da população com alguma incapacidade. A Constituição da República Portuguesa consagrava, em 1976, que “Todos têm direito à fruição e criação cultural”. Em 2006, Portugal não só assinou a carta da Convenção dos Direitos da Pessoa com deficiência, das Nações Unidas, como publicou a Lei n.º 46/2006, que “proíbe e pune a discriminação em razão da deficiência”.

Access Lab, que hoje apresentamos, é uma empresa com uma missão social que nasce para garantir o acesso de pessoas com deficiência e S/surdas à cultura e ao entretenimento, enquanto direito humano fundamental. 

Co-fundada por mim e pela Jwana Godinho, começámos a trabalhar no Verão de 2021. Nas dezenas de reuniões com parceiros, instituições políticas, marcas, associações e amigos que nos têm ajudado, perguntam-nos por vezes: “vale a pena colocar ‘enquanto direito humano fundamental’ na missão? Parece que é evidente”. Sim, é evidente, mas este direito continua a ser violado, precisa de ser honrado e reivindicado. 

Relatei-vos o episódio que me aconteceu há semanas mas não o isolemos: é o panorama dominante para uma pessoa com deficiência ou S/surda aceder a eventos. Esta é a razão porque existimos na Access Lab. Podem conhecer aqui ou aqui mais histórias.

Trabalhamos de forma integrada com planos 360º: não queremos apenas rampas. Precisamos de acessibilidade no online, nos percursos físicos e na programação (Língua Gestual Portuguesa e Audiodescrição); sistemas de bilheteira inclusivos; e aproximação ao público com deficiência e S/surdo — sem a participação das pessoas não se mudam paradigmas. 

Precisamos de todos! É por isso que criámos a comunidade Access Lab, feita de artistas, profissionais, políticos, instituições e pessoas com deficiência e S/surdas. Esta newsletter será um espaço de partilha e discussão quinzenal, com destaques no site e redes sociais. Será ainda uma plataforma de visibilidade com as secções de Agenda, onde destacamos eventos acessíveis, e a Amplificador, onde fazemos precisamente isso: amplificar iniciativas de impacto que estão a marcar a diferença no sector.

A Access Lab será um agente de advocacy na economia social, que acredita nas pessoas com deficiência e S/surdas enquanto potência económica. Lançamos o repto à comunidade de impacto portuguesa a juntar-se a nós para promover a inclusão e equidade. Nunca o assistencialismo. Foi assim que tivemos o privilégio de ser um dos projectos seleccionados para o investimento filantrópico do Fundo +Plus, da Casa do Impacto, da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa — a quem aproveitamos para agradecer a oportunidade!

Amanhã estaremos juntos, no Festival Política, no Cinema São Jorge, pelas 17h30. A conversa, moderada por mim, terá as presenças de Amílcar José Morais, Surdo, mestre em sociologia e professor de Língua Gestual Portuguesa, e Joana Gomes, que tem uma deficiência visual com um vasto percurso na dança inclusiva (pisando palcos com a CIM, VOARTE ou a Candoco). O tema da conversa será: “Pessoas com deficiência e pessoas Surdas. Que mitos sociais têm de ser desconstruídos?”. 

O Festival Política tem a nossa intervenção 360º. Em breve revelaremos os outros projectos com quem estamos a trabalhar numa metodologia pautada pela proximidade entre todos os stakeholders e a inovação social.

Despeço-me lançando-vos um repto: façam parte da mudança!
A cultura, o entretenimento e os eventos são espaços de liberdade, prazer e visibilidade.
Vamos quebrar o ciclo de exclusão perpetuado pela sociedade portuguesa.
Vamos dar corpo às obras artísticas que promovemos nos nossos eventos.
Sejamos plurais, diversos e precursores! 
Seguimos juntos. 
Até já! 

Tiago Fortuna

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