Não são todos os homens, mas como é possível serem todas as mulheres?
Abro esta crónica da forma mais direta e crua que consigo. Durante quase uma década, Gisèle Pélicot foi drogada e violada por dezenas de homens (a pedido do marido). Apesar de apenas 50 desses homens terem sido identificados, a lista de suspeitos passa dos 70.
Dominique Pélicot (71), o marido de Gisèle, admitiu que, entre 2011 e 2020, recrutou homens num fórum online para a violarem enquanto gravava; a situação só veio a público quando Dominique foi preso em 2020 por “upskirting” — tirar fotos/gravar vídeos por baixo de saias/vestidos de mulheres sem o seu consentimento. Foi na busca à sua casa que a polícia encontrou uma pen que continha uma pasta denominada “abusos” — interessante que saiba o significado da palavra, não? A pasta incluía cerca de 20 mil ficheiros, entre imagens e vídeos, de Gisèle a ser violada.
A história era horrível o suficiente até aqui, mas há mais. Não só o ADN de Dominique corresponde ao encontrado no local de uma violação e homicídio de uma jovem de 23 anos, em 1991, e outra jovem, de 19 anos, terá também sido atacada nas mesmas circunstâncias no mesmo ano, como a própria filha do homem encontrou uma foto sua no computador do pai com roupa interior de outra pessoa.
A decisão de Gisèle Pélicot de expor publicamente o seu caso é um manifesto contra o silêncio ensurdecedor que envolve crimes de violência de género. Num sistema judicial onde a vítima é frequentemente reduzida a estatísticas, Gisèle quer que a sua dor e o seu sofrimento sejam ouvidos e vistos, recusando ser mais uma sombra invisível numa sociedade que finge que estes horrores são exceções e não o resultado da misoginia enraizada em todas as partes do mundo, independentemente da cultura. Por outro lado, permitir que o seu julgamento, iniciado a 3 de setembro de 2024, seja aberto ao público, Gisèle desafia o mito da vergonha. Ao expor a monstruosidade dos seus agressores e do próprio homem que deveria tê-la protegido, Gisèle faz-nos questionar até que ponto estamos dispostos a enfrentar as verdades inconvenientes sobre a violência de género e as suas ramificações.
O caso Pélicot toca em várias feridas abertas. Mostra-nos como os abusadores escapam à justiça, protegidos pelo anonimato das plataformas online, pela indiferença de quem os rodeia e, em muitos casos, pelo próprio sistema judicial. A realidade é que não basta identificar os 50 ou mais homens que participaram ativamente no abuso. Deve ser reconhecido que a cumplicidade destes crimes vai muito além dos envolvidos diretamente: inclui todos aqueles que preferem não saber, não intervir e, acima de tudo, não agir.
Este é o tipo de situação que abre portas ao discurso online (e não só) que já tão bem conhecemos — devemos proteger a imagem masculina das generalizações que dizem ser tão prejudiciais. No entanto, tanto foco nesta conversa de “nem todos os homens” desvia a atenção da verdadeira questão: o papel da sociedade na perpetuação de um sistema onde os homens, consciente ou inconscientemente, usufruem de uma posição de poder tantas vezes exercida através da violência e da intimidação. A discussão não pode centrar-se em “nem todos os homens são maus, violadores, abusadores”, mas sim na forma como permitimos e aceitamos que volte a acontecer, vezes e vezes sem conta, mesmo depois de gritarmos tantas vezes “nem mais uma”. Porque há sempre mais uma, e sempre que há as consequências não existem.
Casos como o de Gisèle Pélicot obrigam-nos a refletir sobre a responsabilidade coletiva. É fácil distanciarmos-nos, tratar este caso como uma aberração, uma exceção à regra, e não como um dos sintomas de uma doença que corre tão profundamente no ADN das sociedades que passa despercebida para quem não a sente na pele. A realidade é que a violência de género está entranhada nas suas fundações, e o silêncio, seja ele de indivíduos, instituições ou do próprio sistema judicial, apenas reforça essa violência.
Ao tornar público o seu sofrimento, Gisèle não só denuncia os seus agressores, mas também nos obriga a confrontar a nossa própria cumplicidade. De cada vez que fingimos não ver, a cada comentário violento que ouvimos e deixamos passar, estamos a perpetuar esta violência. Este caso é o reflexo de uma cultura que, repetidamente, vira as costas às vítimas e silencia as suas vozes.
Gisèle Pélicot é um lembrete de que a violência de género não é um problema de “alguns homens” ou de “certos contextos”. É sistémica, enraizada nas estruturas de poder e de género que, em tantas partes do mundo, continuam a proteger os agressores e a ignorar as vítimas. Mostra uma necessidade urgente de responsabilização — não só para os agressores, mas para todos nós.
A mudança começa com a coragem de encarar a verdade como ela é, sem floreados ou embelezamentos: o silêncio, a indiferença e a falta de ação são tão violentos quanto o próprio crime. Gisèle grita contra esse silêncio — cabe-nos ao mundo responder com ação.