Naquela praia de Tripoli

por Pedro Saavedra,    28 Dezembro, 2021
Naquela praia de Tripoli
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Ali, sentado à minha frente, respondeu-me de imediato; Claro que tive medo! Mas se tiver de morrer aqui, morro. Ninguém vai sentir a minha falta. Sustive a respiração durante alguns segundos e pedi para pararmos de gravar. Há mais de quarenta minutos que Abubacar me contava como tinha ido de Dakar no Senegal até Tripoli na Líbia e de como agora tinha chegado à parte da história em que ele e noventa e cinco outras almas estavam num barco pneumático a meio caminho para a ilha de Lampedusa.

Protegido acusticamente pelas paredes reforçadas do estúdio de rádio, já ouvi muitas histórias diferentes da minha. Mais chocantes ou mais apaziguadoras são todas histórias e só isso. Eu faço perguntas e a história flutua à minha frente, naquele espaço seguro que existe entre mim e o convidado. Cada um na sua praia, ali no meio entre nós o ar sustem as palavras como pequenas embarcações num oceano de distância. Fomos feitos para resistir, é a vida, melhores tempos virão, antigamente era pior, são apenas algumas das frases vazias que fui ouvindo ao longo da minha própria vida. Vazias não por quem as disse mas por quem as ouviu, eu. Eu sou um homem português que aqui nesta parte do planeta terra não faz ideia do que é a luta pela sobrevivência. Não ter fome, não ser morto, não deixar que matem os que amo, tudo ideias antónimas do verbo viver. Para que esse verbo funcione não podemos estar sempre em sobressalto e perigo de vida. Isso não é viver, isso é morrer aos poucos, devagar e em silêncio.

Nesses pensamentos interiores egoístas começava a esquecer-me do Abubacar. A ideia tinha sido minha em convidá-lo para contar exactamente aquela história, não porque a tinha inventado ou porque me dava jeito mas porque era mesmo a sua história. Sem tirar nem pôr tinha sido alistado à força no exército guineense e cumprido dez anos de serviço militar. Não tinha continuado os estudos nem tinha ajudado o seu pai nos seus últimos anos de vida, agonizantes pelas marcas da tortura que, após a independência, o novo poder tinha infligido aos que tinham marchado pelo exército português. Filho de um combatente do passado colonial, soldado do exército nacional do seu país, pai de uma criança negada pela honra da família da sua namorada, a Abubacar só lhe restava partir para onde as oportunidades não fossem tão más como as dali. Já no Senegal e motivado por um grupo de jovens como ele partiram de carro a caminho da Líbia, onde diziam haver um tio de um deles que tomaria conta de todos. Caminho atribulado em que a cada fronteira, Mali, Niger, o dinheiro era sempre escondido antes de solicitado por aqueles que em vez de os protegerem os tentavam roubar em qualquer oportunidade. Nada a apontar, por ali é assim, tens de compreender que são culturas diferentes, mais frases apareciam na minha cabeça enquanto o ouvia explicar que dormia sempre seguro com os outros africanos que como ele se protegiam uns aos outros. Encontras sempre o sítio onde os africanos dormem num monte, dizia-me. Sempre pensei que os habitantes do continente africano eram africanos, mas África parece ser um continente que tem africanos e tem árabes, e isso faz toda a diferença entre quem controla quem. Poderiam ser outros quaisquer mas nesta história desde a entrada na Líbia, país onde para se mudar de bairro nem armado se pode ir, os vilões estavam à mão de semear e foi assim que Abubacar entrou no pneumático. Tinha trabalhado em várias casas, a fazer limpezas e comida. Nesta última era ajudado pelo patrão líbio, primo da família do deposto Coronel Kadafi, que também como ele precisava de fugir dali para fora. E pela primeira todos eram africanos em fuga para a Europa.

Ainda o ouvi explicar como, quando o militar italiano lhe estendeu a mão para subir ao navio patrulha que os encontrou, ele soube que aquele militar era mesmo um militar, cumpridor da lei e defensor dos que não se conseguem defender. Mas em mim já nada podia substituir a sensação do como do porquê eu ocuparia o lugar de Abubacar naquele barco. Porque todos, mais tarde ou mais cedo, iremos precisar de refúgio daquilo que nos persegue. Porque todos somos as perguntas de Abubacar naquela praia de Tripoli.

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