NERVE, a pérola do rap e o seu culto negro

por Inês Loureiro Pinto,    1 Maio, 2019
NERVE, a pérola do rap e o seu culto negro
Fotografia: Sofia Matos Silva / CCA
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O Pérola Negra foi o covil do lirismo sombrio de NERVE na véspera do dia da Liberdade – o local e a data mais indicados à letra livre de censura do “sacana nervoso”, uma pérola rara do rap português.

É difícil falar de NERVE com a naturalidade com que se fala com Tiago Gonçalves. Seja alter ego ou um completo paradoxo interior (ou mesmo ambos), o ser engenhoso que baralha letras barradas a um instrumental intrincado vive do mesmo mistério assombrado de que é revestida a sua arte. A música e a poesia saltam à corda, segurada, de um lado, pela auto-exacerbação do monstro poeta e, do outro, pela auto-sabotagem do seu criador.

A nossa conversa com o homem onde o monstro de NERVE habita reflete essa dicotomia. “Acho que as pessoas não se importam, só. As coisas não são muito pensadas, acontecem só como é normal. Não estou aqui a pensar que vou evitar. Tenho o número de entrevistas adequado ao tipo de destaque que tenho, que não é assim tanto, acho eu”. O ego inchado de NERVE não cabe em Tiago.

A conversa decorre atrás do palco do Pérola Negra, minutos antes de Notwan (também conhecido como Mestre André) abrir as vis festividades. A fila que dobrava a esquina lá fora já tinha ocupado a sala. “Sendo um dos gajos com quem eu colaboro há mais anos, fez-me algum sentido começar a trazê-lo para os concertos, por forma a enriquecer o espetáculo”, conta Tiago. Auto-Sabotagem, o EP que está a fazer um ano, tem “letra, voz, instrumental, gravação, mistura, ilustração e design” assinados por NERVE; Notwan e o seu saxofone tenor acabam por ser a única colaboração neste trabalho de um homem só. “Eu queria um dia produzir os instrumentais todos num projecto meu, mas não tinha propriamente planeado para este. Simplesmente aconteceu”, talvez por fazer “muito música sozinho em casa”, revela o músico, produtor, poeta e ilustrador.

Fotografia: Sofia Matos Silva / CCA

Entre tantos títulos, é complicado definir NERVE. Ele simplifica, com a sempre presente troça auto-infligida: “faço música e faço poesia, e isso sou eu a empinar o dedo mindinho, para não dizer que sou rapper. Mas no fim do dia faço música com umas letras um bocadinho mais elaboradas.”

Notwan dá o pontapé de boas vindas a uma sala impaciente pela chegada de NERVE. O músico e produtor pergunta ao público distraído: “quem é que vieram ver mesmo?”. O entusiasmo cresce a orelhas ouvidas quando NERVE pisa o palco. Dá para ver que acabou de chegar, pelo barulho que ironiza o refrão de “Deserto”, antecipado pelo público quando a mesa de Notwan arranca com o instrumental da faixa de abertura de Auto-Sabotagem.

Percebemos que já não é Tiago a gritar do palco; NERVE apoderou-se dele e percebeu logo que não ia estar sozinho: como será constante durante a noite, os seus versos multiplicam-se por cada voz presente no Pérola. A continuar o desfile pelo mais recente EP vem “Plâncton”, que é “sobre como somos todos importantes”. As letras saem da caneta de NERVE, mas declamadas são de todos: quase como se partilhassem uma língua de código, o público completa no tempo certo cada verso atirado pelo monstro poeta que está no palco, e a satisfação pelo sucesso daquela sinergia sente-se tanto na expressão do líder do culto nervoso, como nos seus seguidores, que fluem pelo som como um.

Este não é um concerto de hip hop como os outros; é mais uma sessão de poesia numa fábrica abandonada. A preocupação pela batida está lá (e o som industrial não nos abandona os ouvidos) mas é a letra que figura no pódio. “Acho que a minha preocupação com a escrita faz com que eu pertença a uma minoria dentro do rap português. Não sou só eu a seguir esse caminho, há mais uma série de malta, mas é sem dúvida uma minoria. Gosto de pensar que atrai o público a que podemos chamar alternativo, independentemente de ser malta que ouve hip hop no resto do tempo ou não. Fico bué feliz quando vejo malta que não é do rap e aparece nos gigs“, tinha dito NERVE antes do concerto.

Fotografia: Sofia Matos Silva / CCA

“Vamos conhecer-nos um bocadinho melhor?”, pergunta sem precisar de explicar mais: o público obedece e arranca a série de perguntas que recheiam o refrão de “Monstro Social” – viajamos quatro anos no passado até Trabalho & Conhaque ou A Vida Não Presta e Ninguém Merece a Tua Confiança. “Estou a gostar de ver que fizeram o trabalho de casa”, brinca NERVE enquanto o público anseia pela estrofe seguinte.

Bem aquecidos deste arranque, saímos do trabalho eremita do covil de NERVE para uma colaboração igualmente assombrosa: Mike el Nite não apareceu para completar o resto da faixa, mas isso não foi razão para não se declamar “Funeral”. Antes de mais uma colaboração – inédita no Porto, a que vem –, ainda há “’98”, de Trabalho & Conhaque. Pausa-se o álbum de 2015 para apresentar “Ingrato”, a passagem de NERVE pelo Bairro da Ponte, novo álbum de Stereossauro, com o apoio da outra metade dos Beatbombers, DJ Ride. Apesar de recente – é o último lançamento com o nome de NERVE –, não é menos conhecida pelo público que as anteriores.

As faixas a meias foram outro assunto da conversa com Tiago antes do concerto: o nome NERVE vai sendo espalhado em colaborações como as apresentadas (além de Blasph, Slow J e tantos outros nomes), contudo, nos trabalhos em nome próprio, raramente há outros nomes. “Mas”, sugeriu NERVE, “isso não invalida que num próximo projeto – vamos imaginar que eu estou a trabalhar num álbum – é possível que eu queira ter um projeto muito mais colaborativo, tanto em termos de voz como de instrumentais”.

Se NERVE prefere deixar o futuro para a imaginação, voltamos ao concerto, que é bem real (embora não o pareça: viajamos pela setlist, com cada faixa a derreter-se na seguinte). Depois de “Funeral”, Trabalho & Conhaque é ressuscitado para a faixa que lhe dá o segundo nome e “Gainsbourg” é apresentada assim por NERVE: “se conhecerem, façam barulho; se não conhecerem, também”. O monstro poeta está na sua praia apocalíptica, e pelo seu culto nervoso há um misto de expressões: os da frente repetem cada letra com energia, a grande maioria vai apanhando as punch lines mais certeiras, e ainda outros – de longe os mais enigmáticos – carregam a expressão de quem tenta apanhar as palavras no tempo em que as ouve, tentando decifrá-las no seu próprio. A lírica, a métrica e o humor mordaz de NERVE não são para ouvidos estreitos.

Fotografia: Sofia Matos Silva / CCA

A abertura do som foi precisamente o que deu uma nova camada a Auto-Sabotagem, com NERVE a combinar os habituais sons maquinais a outros analógicos: “eu tenho fases em que ando com um gravador na rua e, se ouço uma fonte de som que ache fixe, capto, e quando chego a casa é que vou ver o que faço. Às vezes tenho até o instrumental feito e penso ‘epá, isto precisava de alguma textura para ser um bocadinho mais orgânico’, e aí é que vou experimentar com essas gravações – tenho uma biblioteca de sons aleatórios. Vou mexendo com os sons e eles vão-se revelando. Por exemplo, quando desaceleras um som ele fica muito diferente do que o original. E às vezes abre-te caminhos que era impossível tu estares a prever antes. O som revela-se à medida que tu o trabalhas”.

“Água do Bongo”, homónimo do EP que serviu de prólogo a Trabalho & Conhaque, vem matar a sede fustigada pelos ânimos. Mergulhamos ainda mais fundo neste projecto e na auto-análise com “Pobre de Mim”. Letras que olham e escrutinam tanto o eu requerem tempo, como a discografia de NERVE deixa adivinhar. “Como o meu processo de escrita é demorado, eu acabo por escrever a letra a ouvir vários instrumentais ou músicas até de outros artistas que eu goste, e muitas vezes acontece depois de a letra estar escrita eu ir produzir um beat para se adaptar a ela”, conta o rapper.

Para a última colaboração da noite, NERVE esquece a mesa de som e grita com o público as barras que assina na faixa “Às Vezes”, de Slow J, saltando de imediato para “Nós e Laços”, sem dúvida a mais ouvida e querida. O líder do culto nervoso até põe a mão no peito frente a um público que lhe responde com as suas palavras. “Subtítulo” traz um sorriso à cara de NERVE quando lhe completam o verso, dizendo o que querem que aconteça ao Texas. Saímos de vez de Trabalho & Conhaque para completar Auto-Sabotagem, primeiro com “Chibo” e depois “Loba”, que Notwan deita com uma linha de saxofone que surpreende o próprio NERVE.

“Estamos a chegar ao fim. Eu só tenho dois pulmões”, diz, antes de abrir “Breu” – do EP deixa só mesmo faltar “Simone”. A declarar o óbito indesejado do concerto, NERVE e o culto que no Pérola se criou declamam, aqui pela primeira vez, com a energia que resta, “Lápide”, lançada no final de 2018.

Se o último concerto no Porto, em setembro, tinha servido para apresentar Auto-Sabotagem ao culto do Norte, este serviu de consolidação de uma discografia sólida, mas sempre em evolução, conseguida pela constante introspecção do génio negro de NERVE – ou a voz que Tiago Gonçalves não consegue calar. Evolução essa que se consegue também revisitando material antigo, como é a intenção com Eu Não das Palavras Troco a Ordem, o primeiro disco de NERVE que tem já mais de uma década: “provavelmente aquando de uma reedição talvez se venha a assistir a um espectáculo especificamente para isso, talvez tocar malhas antigas com novos arranjos, uma coisa que não seja aborrecida para mim estar a visitar. Não quer dizer que a reedição em si não seja o álbum como ele saiu na sua primeira edição, mas ao vivo gostava de experimentar qualquer coisa. Não quero estar a garantir [que sai ainda este ano]. Já foi mais prioridade, agora, lá está, podemos imaginar que estou a trabalhar em outras coisas e logo se vê quando é que isso vai acontecer.

É difícil falar de NERVE, e é ainda mais difícil descrever o que se passa com quem ouve NERVE a soltar os seus uivos numa cave. Se estas palavras não ajudarem a perceber, nas suas: “podemos imaginar…” E podemos ouvir.

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