Neste Natal muitos dos que nos fizeram estarão presos nos lares
Neste Natal muitos dos que nos fizeram estarão presos nos lares. Não poderão estar em casa dos filhos. Ver os netos. Fazer as perguntas que crescem dentro da sua solidão, ouvir as respostas que os apaziguem ou que os obriguem a formular outras perguntas no ano seguinte.
Não tenho ninguém da minha família a viver num lar. E felizmente nunca tiveram de estar. Mas tenho os meus fantasmas, coisas que hoje podem ser contadas, culpas que o tempo amacia ou deforma para permitir o conforto ou o holocausto. Não tinha o tempo suficiente quando estavam vivos, não estive com eles o tempo que precisava, o tempo que mereciam que eu estivesse. Marcas que ficam para sempre. Minhas e de muita gente.
Por isso, ao saber que o governo e a DGS não permitirão aos nossos mais velhos qualquer contacto com a família no Natal, torno aos meus fantasmas. Provavelmente não existiria outra possibilidade depois do que aconteceu nos últimos meses, mas não consigo evitar o pensamento de que aqueles homens e aquelas mulheres, na noite em que na rua se pressente o rumor de crianças, estarão completamente sozinhos.
Mais sozinhos do que na solidão que carregam. Mais sozinhos do que é possível estar quando já tanto viveram, já tanto sofreram, sonharam e combateram. Penso em cada um deles não pensando em ninguém. Penso em milhares de mulheres e homens que têm um nome, filhos e sacrifícios tatuados na pele. Gente que sofreu pelos que ama. Que se sacrificou pelo bem-estar dos que agora estão longe. Que todos os dias pede pelos netos e gasta o tempo que resta agarrado às fotografias de uma família que deixaram de ver crescer.
Os lares são infelizmente necessários. Muitos filhos não têm outra possibilidade. Qualquer juízo de valor que se faça corre o risco de cair em dobro na cabeça de quem o fizer. Não o faço ou farei, era só o que faltava.
Mas neste Natal é importante que todos saibamos — mesmo os que não têm ninguém em lares — que os nossos velhos, os nossos sábios, os que de entre nós mais viveram, estão sozinhos numa consoada de sombras. Tenhamos isso em consideração nos nossos brindes, no nosso pensamento e, se for caso disso, nas surpresas ou sorrisos que lhes soubermos oferecer.
Um dia pode calhar a nós. É bom que nesse dia estejamos de consciência tranquila.