Neto de Moura não representa a Justiça portuguesa, mas será que existem muitos Netos de Moura nos tribunais?

por João Pinho,    10 Março, 2019
Neto de Moura não representa a Justiça portuguesa, mas será que existem muitos Netos de Moura nos tribunais?
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Neto de Moura não representa a Justiça portuguesa, mas existem muitos Netos de Moura nos nossos tribunais e isso é preocupante. De onde é que eu retiro esta ilação? É só estar minimamente atento aos acórdãos de inúmeros casos de violência que são assinados ou escritos por outros juízes que são tão ou mais bárbaros e perigosos – Neto de Moura só não continua a escrever porque o próprio pediu (sim, não foi a ordem a afastá-lo) para não julgar mais casos de violência doméstica -, porque se fazem cursos de maquilhagem para celebrar o dia nacional contra a violência doméstica e, por último, porque o presidente da associação sindical dos juízes – não nos esqueçamos que é alguém que foi eleito de forma democrática – é co-autor de uma sentença que dizia que existia uma culpabilidade por parte da própria rapariga que foi violada ainda inconsciente por dois seguranças numa discoteca, já que existia um ambiente de sedução mútuo (vejam só!). Desta forma, sou obrigado a concluir que se trata de um problema claramente enraizado na nossa sociedade.

Em geral, as reações às últimas decisões deste juiz, ou melhor, ao facto dele opinar com base nas suas ideias pessoais ou com base em passagens da Bíblia, são saudáveis e necessárias. As marchas do dia 8 e a instituição do dia 7 como um dia simbólico mostram que a sociedade evoluiu no sentido do progresso dos valores, uma caminhada longa e dura desde que a violência doméstica se tornou crime público (passou-se a colocar a colher entre marido e mulher), mas os juízes como um todo não acompanharam esta dinâmica positiva. Por outras palavras, existe um sistema que cria e, acima de tudo protege, certas ideias machistas que existem tanto na cabeça de homens como de mulheres juízes, o que é muito curioso. Existe uma ideologia que não distingue ou, pelo menos, que desculpabiliza a violência, nas suas diversas formas, ora porque a mulher estava vestida de uma determina forma ora porque ela não se contentou em ser livre ora porque traiu o marido; ou seja, as justificações que temos de combater no nosso quotidiano. Assim, apercebemo-nos de que as decisões dos juízes estão ao nível de uma conversa de tasca, em que qualquer opinião é aceitável e não existem grandes repercussões. Mas existe uma enorme diferença entre uma conversa de tasca em que alguém é racista ou machista e uma decisão judicial com base nestas mesmas ideias retrógradas e tóxicas. “Para mim é importante a fidelidade conjugal” é uma das inúmeras frases descabidas ditas por Neto de Moura à mais recente entrevista ao jornal Expresso que não deviam ser ditas por alguém do seu estatuto; penso que ela fala por si mesma e não é preciso escrutiná-la melhor.

É importante que as indignações sociais, nas suas diversas formas e contextos, daqui para a frente, não se foquem só neste juiz em concreto, porque isso seria ajudar quem esteve de braço dado com ele. É importante criticar todos os outros juízes que tomam decisões do mesmo tipo ou que as justificam destas formas, criticar quando as vítimas não são apoiadas durante o processo judicial e após o mesmo e garantir que existe uma maior celeridade nos processos, para diminuir o impacto emocional de quem sofreu estas atrocidades. Por outras palavras, é crucial pararmos de nos focar só em Neto de Moura e discutir o elefante na sala: a violência doméstica. Porque por trás das suas opiniões, existe uma sociedade que é machista e misógina constituída por violadores e assassinos. Para além de um pequeno grupo que decide as sentenças, existe um maior números de maridos e amantes que batem em mulheres ou pais que batem nas suas filhas quando a respectiva mulher já não aguenta mais fisicamente.

Um sinal de preocupação ressaltou após um estudo que foi realizado com crianças (penso que do terceiro ciclo e secundário) e que concluiu que, na maioria dos casos, os jovens consideram que se o namorado mudar o PIN do telemóvel da respectiva namorada ou se persegui-la para saber com quem ela anda a mandar mensagens é um comportamento normal. Se os actuais agressores são da geração dos anos 70 e 80, as novas gerações também não reflectem um progresso, algo que pode soar contraditório com a reação geral da sociedade nas últimas semanas. Não consigo dar uma resposta com confiança sobre estes dados, mas garantidamente a luta ainda não acabou, até porque as novas gerações não dão sinais que estes casos não se vão repetir quando forem elas os novos adultos. Por isso, mesmo que Neto de Moura já não julgue mais casos de violência doméstica (ainda assim pode julgar casos de divórcio, partilha da criança ou outros casos do tipo familiar, o que só pode resultar em outras considerações muito interessantes do que é o sentido de família e do papel da mulher na mesma), pouca coisa realmente mudou: os conhecedores da matéria consideram que, deixando de parte a forma como os acórdãos estão escritos, o juiz respeitou a lei e, por isso, o real problema é mais profundo e complexo do que casual ou meramente consequente das ações de uma só pessoa. Assim, temos de olhar para o problema como um todo, mesmo que a primeira reacção seja de revolta em relação a uma figura principal e ridícula, porque até eu reagi assim.

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