No coração e na eternidade de Bob Marley

por Lucas Brandão,    6 Fevereiro, 2018
No coração e na eternidade de Bob Marley
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Bob Marley é um dos maiores ícones mundiais da expressão cultural contemporânea, mesmo tendo falecido em 1981. Indiscutivelmente o mais conhecido músico de reggae de todo o mundo, é conhecido por, mais do que lançar um género musical nas aspirações e nas apreciações de muitos, ser um elemento identitário de uma religião e cultura muito vincada e diferenciada: o rastafarianismo. Com bases jamaicanas, o músico inspirou a proporção daqueles que estimaram as suas canções a debruçarem-se sobre este traçado de uma herança designada com descendências bíblicas. Para lá das letras escritas e entoadas, exibe um cunho que visualiza o mundo nas suas diferentes afirmações e interpretações, conforme a moral religiosa dita, que se expressou além das meras premissas de afirmação racial.

As origens

Os confrontos sociais protagonizados pelas camadas sociais mais críticas e problematizadas permanecem uma realidade nos dias de hoje, sendo o prolongamento de temáticas que se iniciaram em debate público há pouco mais do que cem anos. Os ativistas reduziam-se, até então, aos intelectuais, que promoviam uma cara lavada quanto à legislação civil, e que iam conseguindo algumas conquistas para que a sociedade se tornasse, crescentemente, menos iníqua e mais tolerante, respeitando as diferenças e a diversidade subjacente. Entre os anos 20 e 30 do século XX, um dos períodos de amadurecimento de movimentos políticos encabeçados por cidadãos de etnia negra, que visavam a reivindicação de direitos e liberdades para estes, sentiu-se um rompimento no nível religioso, que se desvinculou do habitual teor católico.

Foi assim que surgiu o rastafarianismo, no coração do continente americano, partindo de rostos como o de Marcus Garvey, embora com raízes na Igreja Ortodoxa Etíope. Acreditando que os indivíduos de raça negra nunca receberiam um tratamento justo num mundo de gente de etnia branca, consolidado pelo colonialismo britânico, organizou um movimento que procurou congregar a comunidade pobre dos grandes núcleos urbanos norte-americanos. Na tentativa de reconstituir uma nova África, seria preso, e regressaria à Jamaica, ilha centro-americana da qual advinha. Nessa altura, disse que um rei africano seria coroado neste território, sendo este o monarca que possibilitaria às gentes de etnia negra uma nova realidade. Pouco tempo depois, em 1930, Ras Tafari Makonnen (ras significa príncipe) seria coroado imperador da Etiópia, passando a ser designado, por opção própria, de Haile Selassie, que significa “poder da Trindade”. Este provinha de uma dinastia que descendia da união entre o rei Salomão e a rainha de Sabá, tornando-se exaltado como o rei dos reis. Muitos viam a profecia de Garvey confirmada neste semblante, majestade do leão conquistador da tribo de Judá, eleito por Deus.

A consolidação e os valores

Os apreciadores de Selassie atribuíram-se a alcunha de rastafáris, a partir do nome original do imperador. Esta empatia nutrir-se-ia em especial na Jamaica, proliferando-se nos anos 60 e 70 nos Estados Unidos, e estendendo-se, até aos dias de hoje, para lá do milhão de seguidores. Em termos de premissas defendidas, poucas foram aquelas que já tinham sido defendidas pelos crentes no Novo Testamento cristão, embora se mitificasse uma ligação com as raízes desta religião. A divindade tornou-se, contudo, moldada na órbita da figura etíope, embora o culto metafísico se dirigisse a Jah, abreviatura de Jeová, na forma de uma segunda vinda de Jesus Cristo à terra. O povo de etnia negra era assumido como aquele que se tinha perdido de Israel e, como tal, aquele que tinha de repovoar o reino de Deus na forma da Etiópia.

Interessa também perspetivar o sentido judaico da raça negra neste contexto rastafári, em que os seus proponentes vislumbravam a possibilidade de voltar ao seu continente, a África, recuperando a sua identidade para uma futura proliferação pelo globo. Este sentido revanchista presenciou-se nas alas mais extremas dos envolvidos, que perspetivavam o colapso da população branca e da cultura ocidental, tomando-a como a Babilónia, e como o Deus desta Satanás. A literatura que norteou os rastafáris assentou na compilação de Robert A. Rogers, de seu título “The Holy Piby” (1917), que tenta reaver e repor a verdade deturpada pelos escolásticos desde o Império Romano, caraterizando os profetas e Deus como brancos, e não de etnia negra. O idioma, apesar de inglês, sofreu grandes inspirações do amárico, língua usada na Etiópia, não sendo rara a expressão a partir desta. No entanto, grande parte dos que se viriam a suceder aos fiéis seguidores de Selassie advogaram a justiça, a igualdade e a equidade, valores civis aplicáveis a todo o povo universal, e não restringindo a laivos de supremacia étnica.

Naquilo que é a conduta religiosa, os rastafáris propõem o seu próprio sacramento, expondo a marijuana como a erva da sabedoria. Assim, os proponentes desta corrente incentivam os seus membros a fumar ganja como um ritual religioso, tomando em linha de conta que esta brotava no túmulo de Salomão. Com fundamento na Bíblia, assumem a erva como destinada para o consumo humano, sendo avessos à carne vermelha, ao álcool e ao tabaco, para além de outros aditivos que consideravam impuros. Para a própria abordagem a eventuais doenças, a sua medicação limitava-se a produtos meramente naturais, contrários aos químicos, na crença de que somente Jah teria a cura ao acesso do seu povo.

Outro aspeto cultural, definidor daquilo que são os rastafáris, surge no seu visual, a partir do uso de rastas, resultante do crescimento capilar destes. O termo “dread”, truncatura da tradução do inglês “dreadlocks”, aparece para representar os conflitos que alguns indivíduos protagonizam na tentativa de manter a sua identidade racial, e que é perseverada a partir dessa diferenciação no cabelo em relação aos caucasianos. A representação da bandeira é muito significativa, remontando aos primórdios da mesma na Etiópia, figurando o leão de Judá coroado e ladeado pelo verde, pelo amarelo e pelo vermelho, representando o verdejante do continente africano, o brilho do Sol deste, e o sangue derramado pelo povo africano. Na sua génese, emite a esperança, a força e o amor por toda a humanidade, para além do orgulho e da estima por Deus e pela espiritualidade.

No que toca a valores preconizados, esta corrente nem sempre assume a benevolência retratada nas letras musicais do seu principal referencial, Bob Marley. Nas suas formas de disposição social, à luz de uma interpretação muito própria da Bíblia, a heterogeneidade assumida pelos seus membros leva à ausência de uma autoridade centralizada, mas que remonta ao percurso traçado por Abraão e pelos ancestrais israelitas, embora as ligações patriarcais permaneçam ainda muito vincadas. As celebrações dos perto de um milhão de crentes pelo mundo sucedem-se em várias células denominadas Mansões do Rastafari, que anunciam essas diferenças de interpretação e de atuação, corroborando a diversidade que existe na própria religião. São as várias interpretações que impedem que haja um caminho fixo e ortodoxo, orientado somente para um rumo, mas que alimentam a importância da experiência pessoal e da intuição na construção das crenças.

Nos seus primórdios mais radicalistas, afirma e reivindica o ódio pela etnia branca e a superioridade negra, assumindo Selassie como o profeta supremo dos negros, a esperança de um regresso às suas origens territoriais em África, e a negação de vida para além da morte, embora este valor seja modificado com o tempo, acreditando na vida no Zion, no céu que recebia aqueles que partiam. Geograficamente, como referido, a Etiópia é o espaço que mais se aproxima do céu avistado pelos rastafáris, não havendo, no entanto, inferno, nem na terra, nem para lá desta.

O papel de Bob Marley

Os anos 70, já amadurecidos no sentido daquilo em que acreditavam e no que propunham, depois de uma fase de turbulência acentuada diante das forças de segurança pública, conheceram o auge da sua repercussão, e muito através de um pacifista, que levava consigo o hábito de fumar ganja e as tradicionais rastas. Foi ao lado da sua banda, os The Wailers, que Bob Marley cunhou um estilo musical muito identitário, proveniente da ilha jamaicana. O reggae nasceu, e deixou alguns rastafáris, agora denominados simplesmente por rastas, desagradados, considerando o crescimento deste género musical como uma traição, passando para o lado da famigerada Babilónia branca.

Nascido em 1945, é resultado da miscigenação que se tornou comum nos países em subdesenvolvimento, filho de um indivíduo de etnia branca e uma indivídua de etnia negra, no seio de uma família católica. Aos 14 anos, saiu de casa, para viver com um cantor local, de sua religião rastafári, e de seu nome Joe Higgs. Assim, deixou crescer as suas célebres rastas, seguindo o preceito da Bíblia de não ser careca, e começou a assumir uma dieta vegetariana, advindas das práticas alimentares rastafáris conhecidas como o ital, evitando alimentos de origem animal. Ao lado de Bunny Washington e de Peter Tosh, entre outros, fundaria, em 1963, a banda The Wailers, já após se casar com Rita Anderson, também ela uma devota rastafári. A fama foi alcançando ouvidos e sentidos fora da ilha jamaicana, e, apesar de algumas mudanças no contingente do grupo, permaneceria com a fama incólume, tal como na sua nova designação, os I-Threes.

O reggae vinha adquirindo uma personalidade distinta, que pronunciava as necessidades e as vocações do povo rastafári, não esquecendo a vontade de sustentar um movimento social, sem esquecer a ingestão de um corpo de espiritualidade determinante no seguimento desse percurso. O governo jamaicano reagiria, nos anos 50, com veemência, prendendo e deportando alguns dos seus líderes, e só iria diminuir a sua animosidade com a popularização do próprio género musical, a partir da figura de Bob Marley. A política ajustou-se e incorporou o reggae e a cultura rastafári para a identidade jamaicana quotidiana, embora as circunstâncias sociopolíticas de vulnerabilidade e de marginalidade permanecessem; chegando aos dias de hoje as contendas ainda por se encerrarem, e na qual os The Wailers tanto se bateram.

Dentro de portas, a aura de profeta que se foi criando em torno de Marley permaneceu consolidada a partir das letras, que transportavam significados substanciais para os crentes e para os ideólogos rastafáris. Um profeta que reivindicava a emancipação do povo de etnia negra, a justiça social, o fim da pobreza e da opressão por todo o mundo, e o pan-africanismo; sem deixar de tecer críticas a vários aspetos da vida e da crença ocidentais. Assim, grande parte das suas músicas envolveram tópicos políticos, de denúncia da realidade precária jamaicana, mas também sentimentais, com a maioria a deter um cunho profundamente rastafári. Do seu repertório, destacam-se as identitárias “Natty Dread”, “Positive Vibration”, “Exodus”, “Forever Loving Jah”, e as célebres “Redemption Song”, “One Love”, e “Get Up, Stand Up” (esta de pendor mais ativista).

A religião e a política jamaicanas encontravam uma fonte do seu sabor mais purificado e sentido, embora sentisse amargos de boca quando foi expulso de um concerto no Zimbabwe, recém-independente dos jugos colonialistas, no auge da sua carreira, em 1980. Um ano depois, porém, deparou-se com um cancro que poderia ter sido minimizado com a amputação da sua perna, onde este se deflagrou. Contrário, por crença e por emoção, a esse tipo de intervenção, deixou-se apoderar por essa recorrência, partindo aos 36 anos em maio.

O rastafarianismo cresce, desta feita, numa dualidade que ondula pela radicalidade e pela supremacia étnica, mas que conhece uma redenção na vocação pacifista e igualitária, entoando a paz, e apelando à figura de Jah para a conduzir a todos os seus filhos. O reggae foi um meio de comunicação que deu expressão e expansão à cultura e à crença rastafáris, e que conheceu, na figura de Bob Marley, o seu profeta, o seu expoente máximo naquilo que é a transmissão de uma identidade e de um desejo de unir o mundo, de erradicar com as expressões do mal. É desta forma que o rastafarianismo, reconhecido e saudado por todo o mundo, especialmente pelos ideais de progresso e de civilização, permanece bem vivo nos dias de hoje, eternizado nas letras, nas pronúncias, nas vozes e nos feitos de Bob Marley e dos seus.

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