Nolan perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem

por Luís Azevedo,    1 Abril, 2017
Nolan perguntou ao tempo quanto tempo o tempo tem
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“Eu sempre fui fascinado pelo tempo, pela subjetividade do tempo, e o ‘Interstellar’ é o primeiro filme em que pude explorar isso como uma parte literal da história.”
Christopher Nolan em “Interstellar: ‘Nolan’s Odyssey” (2014)

Christopher Nolan pertence a uma nova geração de realizadores que deliberadamente questiona a divisão entre cinema comercial e de autor. Mas ao contrário de Wes Anderson, Quentin Tarantino ou David Fincher, olhando para o cinema de Christopher Nolan, é difícil defendê-lo plano a plano. Este trio americano seria capaz de explicar, individualmente, o motivo de cada posicionamento de câmara, de cada plano e corte que os une e separa. Se esse desafio fosse colocado a Nolan ele seria incapaz de o completar, mas desconfio que aí nunca residiu a sua atração pela sétima arte.

É necessário um distanciamento, um astigmatismo crítico, para esquecer as falhas de planeamento e montagem do realizador – que Jim Emerson explica aqui, num formato mais apropriado a este tipo de análise. Só depois é possível perceber o seu contributo para o cinema contemporâneo e, principalmente, aquilo que lhe traz de único.

Segundo David Bordwell, existem quatro formas em que um cineasta pode inovar. A primeira é o assunto. O recente “Moonlight” (2016) inova ao abordar a homossexualidade na comunidade afro-americana. A segunda é o desenvolvimento de novos temas. A ficção científica, durante anos, foi dominada por “conceções de tecnologia futura como sendo polidas e eficientes mas, depois de Alien, testemunhamos o futuro a ser tão delapidado quanto o presente.” A terceira é o estilo. Godard mudou o cinema com os jumpcuts que introduziu em “Breathless” (1960), que agora empresta à estética dos vloggers do YouTube. A quarta é a introdução de novas estratégias formais, que revigoram o tratamento de estrutura e narrativa. É aqui que Nolan brilha.

Numa entrevista para a “Premiere”, o realizador descreveu este projeto como o seu filme mais experimental, revelando que “para conjugar estas diferentes versões da história” teve “de misturar camadas temporais. Uma estrutura complicada, mesmo que seja uma história simples.” Com diferentes graus de complexidade, foi isto que Nolan sempre fez, desde o seu primeiro filme.

As duas ou três horas de qualquer filme podem corresponder, através de uma elipse, a milhões de anos na vida real. Em “2001, A Space Odissey” (1967) um fémur sobe pelo ar e, quando desce, Kubrick corta dessa imagem para uma nave espacial. No momento entre os dois planos foi condensada toda a história da humanidade. O tempo pode avançar ou retroceder, a velocidades diferentes que o realizador escolhe onde colocar. Christopher Nolan encaixa esse tempo em diferentes estruturas tortuosas, que cria de forma diferente para cada filme, em variações não-lineares.

“Following” (1998), a sua longa mais curta, é a primeira experiência com estruturas complexas. A ação de cada cena é cronológica, mas as cenas são encadeadas de forma aparentemente aleatória, tornado o tempo fluído. Ao espectador são dadas pistas físicas: Bill, o protagonista, aparece alternadamente de cabelo longo e barba por fazer, mais aprumado e com a cara sovada. Esta história noir simples é divida em quatro partes, reorganizadas para tirarem o máximo proveito dos momentos climáticos ao mesmo tempo que simulam a confusão do protagonista.


São as marcas na fisionomia e indumentária do protagonista que orientam o espectador

Em “Memento” (2000), as pistas são justificadamente mais berrantes, dada a estrutura circular do filme, a mais complexa de toda a sua filmografia. Nolan alterna entre cores e preto e branco para separar as diferentes cronologias. A preto e branco desenrolam-se, linearmente, uma série de chamadas em que Leonard conta a sua versão da história, até àquele ponto. Com a tela a cores a narrativa avança linearmente, mas de trás para a frente. Nesse principal segmento desenrola-se a investigação e perseguição de um criminoso, o assassino da esposa de Leonard (Guy Pierce). As duas cronologias alinham-se perto do final do filme com um subtil desvanecer, de preto e branco para cor.

Esta astúcia formal procura deliberadamente simular, para o espectador, a incapacidade sentida pelo protagonista de reter o tempo. Nolan nega-nos assim o contexto necessário para uma total compreensão narrativa. Na falta de memória própria, Leonard substitui-a pela memória fotográfica de uma polaroid, Nolan por película de 35mm.

A complicação do tempo é um interesse de muitos cineastas, mas em Nolan esta preocupação reflete-se na necessidade de, para além de complicar o tempo, motivar essa complexidade. Em Memento, a motivação origina na amnésia anterógrada do protagonista. Em “The Prestige” (2006), é a leitura dos diários de Alfred Borden (Christian Bale) e Robert Angier (Hugh Jackman), que motiva a troca de perspetiva. Quando um lê o diário alheio, o filme mergulha no ponto de vista do outro. Este dispositivo cria histórias dentro de histórias, que alternam impercetivelmente, porém de uma forma mais subtil que outro interessado em “embedded stories. Em “The Grand Budapest Hotel” (2014), Wes Anderson dividiu a narrativa em quatro períodos e delimitou-os por títulos, estilização pictórica e mudanças de “aspect ratio”. Em “The Prestige” os quatro períodos são fraturados quase impercetivelmente. O raio X mostra cenas do presente e de dois passados, um deles mais distante. Estes tempos alternam e cruzam-se, rodando sobre o eixo dos diários.

“Insomnia” (2006) e a trilogia de The Dark Knight são os filmes em que o tempo é estruturado de forma mais linear, mais contida. Em “Insomnia” o tempo pesa, mas não como em “Inception” (2010) ou “Interstellar” (2013), em que a lógica de sonho ou as viagens espaciais multiplicam a velocidade do relógio. No filme de 2006, são as noites brancas do Alasca a fazer o relógio parar, a fazer o tempo pesar nas pálpebras de Dormer (Al Pacino), preso num dia eterno, ao longo da investigação que encabeça. A culpa que o assola prende-o no mesmo sentimento, mas é a luz de um dia sem crepúsculo nem aurora que fecha as grades. Como Dormer, Bruce Wayne também está preso no tempo, no poço onde caiu e perdeu a primeira batalha contra os seus medos. Esse momento criou o Batman. É a ele que Bruce volta sempre que encontra adversidade. “The Batman Begins” (2005) termina com ele a selar a entrada para o poço. Quando a trilogia encerra em “The Dark Knight Rises” (2012) Bruce é encerrado novamente no fundo de um poço, noutro momento simbólico, desta vez pelas mãos de Bane. Lá reencontra o medo com que se tinha deparado em criança, mas supera-o sem o auxílio do pai que o salvara do primeiro poço. É pela própria mão que Bruce fecha esse círculo, deixando-o para trás permanentemente.

O primeiro frame foi retirado de “Batman Begins”, o segundo de “The Dark Knight Rises”.

Deixando a trilogia para trás, os seus últimos dois filmes mostram sistemas cada vez mais intrincados e expansivos para explicar a sua manipulação do tempo. Muitas das críticas a “Inception” e “Interstellar” apontam o dedo à sobre-exposição, ao excesso de diálogos que não só explicam a complexidade lógica dos filmes, como a reiteram a cada oportunidade. Contudo, em sua defesa, existe artifício nesta exposição e prazer na descoberta. Para “Inception”, Nolan começa com conceito de exposição que define os heist movies e estende a explicação do plano de ação – que normalmente ocupa uma ou duas cenas – à duração do filme.

“Uma das coisas fascinantes sobre o cinema de assalto, e uma das razões pelas quais o defini como modelo, é que se trata do tipo de exposição que, na maioria dos filmes, é a mais problemática, cansativa, ardilosa, difícil de transmitir –  no cinema de assalto torna-se a substância disso… É parte do entretenimento porque simplesmente o processo de um filme de assalto e esse tipo de procedimentos, a forma como tudo é composto e integrado, se torna a razão pela qual tu assistes à história.”

O processo, o mecanismo de resolução torna-se mais importante do que a resolução em si. Ao explorar as possibilidades de tomar controlo do subconsciente, de habitar os sonhos de quem dorme, de lhes roubar informação ou introduzir ideias no subconsciente, Nolan abre uma nova janela para explorar camadas temporais. Dez horas no mundo real equivalem a 200 no primeiro nível do sonho. No segundo e terceiro nível a duração multiplica-se exponencialmente. No último, o limbo, o tempo quase para; dez horas correspondem a um purgatório de 185 anos. Nolan alterna entre os quatro níveis, criando uma matrioska de diferentes histórias e cronologias. Quando finalmente emergem dos múltiplos sonhos, décadas vividas no sonho traduzem-se em meras horas passadas no mundo real.

Ao contrário do que acontece em “Interstellar”, em que as vidas/experiências nunca ultrapassam a fronteira sonho-real, o tempo em “Interstellar” carrega implicações físicas diferentes. As vidas que chegam a ser vividas no sonho ficam lá encerradas ao acordar, mas as décadas que se passam em “Interstellar” carregam implicações físicas diferentes. Nem a velocidade das viagens interestelares de Nolan salvam da crueldade da passagem do tempo, pois o despertar de um sonho não apaga o passado.

Quando Cooper (Matthew McConaughey) é obrigado a visitar o planeta Endurance em busca de sinais de favoráveis à vida humana, ele tem de fazer uma escolha. Uma escolha entre o ser o humano que é e a humanidade que representa e pode salvar. O tempo é o derradeiro sacrifício de Cooper em “Interstellar” . Quando ele entra na atmosfera de Endurance, cada sessenta minutos representam sete anos dentro da atmosfera. Sete anos de ausência da vida de Murph, a sua filha na Terra. Ao estabelecer as implicações das viagens em busca de uma nova casa para a humanidade, Nolan está a criar uma ampulheta metafórica, cuja areia escorrega mais audivelmente, criando mais pressão, a cada segundo que se passa.

Quando escapam do planeta, passaram 23 anos na Terra. 23 anos que lhe escorrem por entre os dedos em 3 horas. A implicação dessas horas faz o tempo colidir, criando a cena mais emocional de toda a filmografia de Nolan. O protagonista e a espectador sentem, ao mesmo tempo, as consequências dessa colisão, de tudo o que foi perdido. O sacrifício de Cooper assume uma forma física quando ele se senta em frente a um monitor e assiste a décadas passadas, irrecuperáveis, condensadas em curtas mensagens audiovisuais; pedaços de filme dentro do filme.

É o tempo a qualidade que distingue o cinema das outras artes visuais. É na duração do tempo e na sua organização no filme que reside a magia do cinema. Manipulando-o, Nolan cria histórias únicas. Justificando a manipulação, aclara as suas possibilidades. Aclarando estas possibilidades, maximiza o seu impacto emocional para um público mais vasto e cria uma ponte entre o cinema de autor e mainstream. Christopher Nolan é um visionário do cinema popular, que explora como mais nenhum realizador de Hollywood a máquina do tempo a que chamamos cinema.

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