“NÔT”, de Marlene Monteiro Freitas: histórias para dormir acordado

por Tiago Bartolomeu Costa,    18 Setembro, 2025
“NÔT”, de Marlene Monteiro Freitas: histórias para dormir acordado
Fotografia de Fabian Hammerl
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Em Mal – Embriaguez Divina (2020), Marlene Monteiro Freitas convocava-nos para um julgamento: sobre o corpo, acerca do desejo, da culpa e das estratégias de resistência e libertação. Era um espetáculo assente num fulgor crítico e cívico, para o qual eram trazidas um conjunto de imagens, em escala e perspetivas distintas, que se organizam num vórtice visual e sonoro que reconstruía os limites da cena e da coreografia. Era uma peça que criava plataformas de entendimento entre o pensamento de Georges Bataille e o musical Jesus Cristo Superstar, entre o teatro de Tadeusz Kantor e o bailado O lago dos Cisnes, para analisar estratégias sobre o mal e os mecanismos de disseminação. Era uma peça em estado de alerta.

Em NÔT, a coreógrafa coloca-se, e a nós, em estado de sítio, regressando à euforia de Bacantes – Prelúdio para uma purga (2017), e demonstrando como o prazer está ligado ao perigo, e como o entretenimento – ou a ficção – podem esconder muito mais do que o real, tornando-se alibi para a sua derrota. Do mesmo modo que na adaptação da tragédia de Eurípides, onde Apolo e Dionísio se confrontavam para fazer valer princípios de liberdade e controlo, usando o sexo e a morte como modelos sociais, esta leitura de As Mil e Uma Noites parte de um uso da memória como mecanismo de resistência.

Marlene Monteiro Freitas / Fotografia de Stephie Grape

Já o havíamos percebido com ÔSS (Dançando com a Diferença, 2022) e haveremos de o comprovar com Canine Jaunâtre 3 (Basheva Dance Company, 2017; apresenta-se na Culturgest a 24 e 25 Janeiro 2026 numa nova remontagem feita em 2024 para o Ballet da Opera de Lyon) ,peças sobre território e corpos marcados pela impossibilidade de defesa, rasgando fronteiras e propondo um mapa distinto que albergue a palavra, o som e o corpo como referências e sinais de mudança.

Este percurso, que não sendo linear é consequente, permite apontar uma qualidade inquiridora de um trabalho sobre a presença, muito para lá da coreografia. Parecem, aliás, espetáculos que reclamam a ativação da atenção, e reagem contra a expetativa. No fundo da memória, evocar-se-ia o gesto radical de Maguy Marin com HA! HA! (2006), reação epidérmica ao desejo de conformismo, de superação e de cumprimento de expetativas, ao colocar um conjunto de manequins cujas cabeças explodiam de tanto rir, manipulando a culpa através do entretenimento.

Fotografia de Fabian Hammerl

Este NÔT (noite em crioulo) é um espetáculo de energia feérica, imbuído de uma consciência de resistência como ato de domínio e de tentativa de alteração das dinâmicas de poder. Há inebriamento e confronto, onde deveria haver sedução; e há exposição e denúncia, onde deveria haver descrição. As grades, as camas, as máscaras, os microfones, a roupa branca e o sangue espalhado são acessórios para a narrativa que ensaiam contar, criando a possibilidade de projeção onde se poderia esperar exposição. É expetável que divida, anestesie, exalte e transforme.

Percebe-se melhor a sobreposição de camadas de ações quando se sabe que o espetáculo nasceu para uma frente de palco de 38 metros, a Cour d’Honneur do palácio dos Papas, em Avignon, onde estreou em Julho deste ano, por entre a habitual turba de fiéis, novos acólitos, detratores e outros indignados até à letargia, e inaugurando uma tournée de meses, agora já em sala.

Da asfixia cénica, Marlene Monteiro Freitas retira o melhor do seu próprio trabalho, uma construção em crescendo a partir do interior.

Fotografia de Fabian Hammerl

O que importa sublinhar, uma vez mais é a qualidade intrínseca do movimento, o detalhe com que cada gesto é trabalhado, e o modo como o conjunto de interpretes participa de uma mesma frase, ampliando, nessa sobreposição, um desenho que parece vago, mas se inscreve numa partitura de contrastes, arestas e dobras de uma mesma ideia. Todo o desenho espacial obedece a um princípio orientado para o desvio do olhar, como se a “montagem” que o espetador faz participasse da extensão de movimento da cena para a plateia. É a forma que Marlene Monteiro Freitas tem de nos envolver num movimento austero, bruto, cru e exposto. É a forma que Marlene Monteiro Freitas tem de testar, e convocar a nossa própria forma de contar, para sobreviver à verdade determinista. É, em suma, um espetáculo onde o corpo se deixa atravessar por um fulgor urgente que vive no risco da sobreposição e que pode, de forma muito natural, afastar quem esperar ser embalado.

NÔT estreou a 5 de Julho 2025 no Festival d’Avignon, e apresentou-se na Culturgest (Lisboa) entre 12 e 14 de Setembro 2025. Será ainda apresentado no Teatro Municipal do Porto entre 19 e 20 de Setembro 2025.

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