Nova Batida (dia 3): subimos com Four Tet ao cume do festival
Última noite de festa na LX Factory e no Village Underground – a segunda edição do Nova Batida, que este ano se afirmou pelo seu cartaz de luxo no campo da electrónica, teve os seus prós e contras (neste dia derradeiro, por exemplo, tivemos a notícia de mais um cancelamento). Mas a última noite ainda tinha reservado para nós dois dos melhores concertos do festival.
Comecemos por aí – por uma das maiores surpresas desta edição do Nova Batida. Os Ibibio Sound Machine, colectivo londrino que trilha o mapa do afro-funk, será daqueles casos que, ao vivo, deixarão muito poucos ouvintes indiferentes. Dez músicos em palco: a vocalista Eno Williams, ladeada por duas acompanhantes que formam o seu coro; um guitarrista fenomenal, Alfred Bannerman, que teve espaço para brilhar várias vezes ao longo do concerto; mais um baixista, dois percussionistas, e um trio que alterna entre os teclados e os metais de sopro. A grandiosidade da formação, e o som cheio com que se apresentam, recordam-nos o espectáculo de Jannele Monáe (embora menos teatral), a ambição dos LCD Soundsystem, ou a energia saltitante dos Tank and The Bangas. Estas três bandas constituem um bom termo de comparação para o espectáculo dos Ibibio Sound Machine.
Na hora de concerto a que teve direito, o colectivo suou, dançou, e convidou todo o público a suar e dançar consigo. Os temas alternavam entre uma ambição contemplativa (que jogava com os crescendos sónicos e emocionais) e uma declaração mais linear de convite à dança. Fosse qual fosse a receita seguida, concluiu-se que o balanço do corpo era efeito secundário mais que certo. Uma bomba de energia e uma das maiores ovações do Nova Batida, apesar de o público, àquela hora, ainda ser relativamente reduzido. Os Ibibio Sound Machine revelaram ter coração e ambição – e ficamos à espera da próxima oportunidade de os poder ouvir por cá.
Gostaríamos muito de ter ouvido a estreia do rapper britânico Octavian no palco principal do festival, mas algumas momentos antes ficámos a saber que o artista cancelara a sua presença por motivos de saúde. Depois de há algumas semanas o rapper Slowthai também ter desmarcado a sua passagem pelo Nova Batida, fica o sabor amargo de uma ala do festival que não chegou a revelar-se (a secção de hip hop foi severamente reduzida por uma série de contratempos). Mas adiante.
Seguimos para o palco do Village Underground. Era Hunee quem assumia os comandos da mesa de som, sempre a piscar o olho ao deep house. Não podemos dizer que gostámos nem que desgostámos – o set sabia já a aquecimento para o nome maior da noite, Four Tet. É mais ou menos essa a mesma opinião que podemos ditar sobre o set de Ben UFO já no palco principal – embora tenha demonstrado ímpeto e força na música propulsiva que punha a passar, o set teve um sabor algo derivativo, tendo apenas em raras ocasiões fugido do beat genérico e festivo que com facilidade põe boa parte da plateia aos pulos e a gritar “yeah”‘s.
Em Four Tet, contudo, a história foi outra. O concerto que ouvimos no Primavera Sound do Porto em Maio do ano passado tinha-nos deixado absolutamente delirantes – com o palco às escuras, o músico inglês deixara a sua música falar por si, sem efeitos de luzes, sem staging. Uma autêntica viagem sónica (que se aproxima muito dos registos ao vivo que entretanto editou, no Funkhaus em Berlim, e no Alexandra Palace em Londres). Como o set iria ter duas horas, esperávamos uma performance focada no seu trabalho de estúdio e com asas para voar. Não foi isso que aconteceu – mas o último quarto do concerto foi uma obra-prima que nos convenceu completamente.
Vamos por partes: nos primeiros quinze minutos, Four Tet inicia com uma sequência vocal digitalmente manipulada, um jogo de harmonias que destoava da electrónica que nos tinha sido proposta nas últimas noites. Este primeiro segmento é complementado, alguns minutos depois, por uma performance de “Planet”, que arranca a primeira reacção verdadeiramente entusiasmada da plateia. Nas teias que tece com uma certa cultura oriental nos seus trabalhos mais recentes, Four Tet pesca pérolas preciosas, tesouros raros na arte do sample. Cordas recheadas de emoção. É o grande trunfo da sua carreira. Mas, passo a passo, o concerto afasta-se desse primeiro cenário inicial – e segue-se mais de uma hora de música mais dançável, bidimensional, e menos ambiciosa em termos melódicos e harmónicos. Tem sabor a desilusão – esperávamos mais de Four Tet, do que apenas a sua batida que continua a ser marca de autor reconhecível, no meio do passeio derivativo a que convida a audiência. Todos dançam – mas falta uma chave ao concerto.
Mas eis que chega o último quarto do concerto. Uma meia-hora que não iremos esquecer tão cedo, e que dificilmente conseguiremos traduzir. Numa sequência inspirada, indutora de transe, cruza um dos seus mais recentes singles – “Only Human” – com uma das faixas mais bonitas do seu último álbum de estúdio, “Lush”. Os temas, que harmonicamente não só casam como parecem acrescentar novas ideias um ao outro, constituem uma poção mágica explosiva. Talvez movido por essa energia, Four Tet acrescenta à sequência dois outros temas que não nos abrandam em nada o entusiasmo: um segmento de rap que não conseguimos identificar, e um seguinte de techno (“Utility, de Barker, editado este ano). Tudo flui, desliza, com emoção.
A fechar o concerto, em êxtase, Four Tet repesca o seu remix do tema de Bicep, “Opal”, uma das músicas que mais carinho recolhe da plateia. É uma experiência full circle: duas noites antes, Jon Hopkins passara esse mesmo tema no seu set. E Four Tet encerra o seu (e, de certa forma, o festival) com esse momento de profunda emoção. Um testemunho bonito e verdadeiro do que a electrónica pode fazer enquanto género, mesmo apesar da sua simplicidade (e talvez por meio dela). Foi um final glorioso e de rara beleza, que estamos gratos de poder ter ouvido e vivido.