Nova Iorque, o sonho onde me vi americano
Eu tinha 29 anos pela primeira vez quando fui a Nova Iorque. Ainda não tinha ido, mas já tinha lá estado, não fosse uma das minhas primeiras memórias a família reunida à volta da televisão a ver a segunda torre gémea cair, em 11 de setembro de 2001. É estranho pensar como uma cidade do outro lado do Atlântico, num outro país que não o meu, é uma das referências do meu ser. E é isso que se sente quando se visita Nova Iorque. A cultura norte-americana tem uma presença tão grande na nossa vida, que quando se anda por lá, nada é novo, o que nos provoca a sensação de que eles não têm cultura. Mas é uma ilusão. A cultura deles é tão hegemónica que visitar Nova Iorque é visitar uma parte de nós.

Assim que cheguei a Nova Iorque senti logo algo diferente. Uma senhora muito simpática, de Santa Lúcia, mas que já vivia nos EUA há mais de 20 anos e portanto norte-americana (é curioso, em Nova Iorque, ninguém é de lá, mas toda a gente é de lá), e que trabalhava no comboio intra-aeroporto, ofereceu-me um cartão de metro que um outro turista que lhe tinha dado. A simpatia americana é uma coisa que me marcou desde o primeiro momento. E, logo a seguir, quando entrei na carruagem, parecia estar num planeta Terra reduzido à escala de uma carruagem de metro. Havia gente de todo o lado: asiáticos, negros, índios americanos, caucasianos, tudo, inclusive misturas. Vi também gente de várias classes, como jovens equipados com os melhores equipamentos eletrónicos possíveis, ao sem-abrigo que dormia num canto, por detrás de um saco-preto que ergueu entre a janela e um poste da carruagem. Eu senti-me pequeno, senti que a minha realidade portuguesa é minúscula comparativamente aquela nova iorquina.

Quando se volta à superfície, entende-se o quão poderoso é o show-off americano, e como eles conseguem, principalmente através da arte do cinema, criar uma estética que nos faz idealizar aquele país. O ritmo é frenético, há pessoas sempre a correr de um lado para o outro, buzinas a tocar, sirenes a disparar, carros a acelerar. Parece-se ouvir os passos de toda a gente a andar de um lado para o outro, enquanto mascam a comida plástica “to go” que pegaram numa loja qualquer. Tudo rodeado de prédios gigantes, envidraçados, feitos em betão armado, fazendo jus ao cognome selva de betão. Tudo o que teria para estar errado, está certo, porque os americanos têm a magia de conseguir romantizar mesmo esta aceleração endiabrada da vida. É impossível andar por Nova Iorque e não sentir-se quase que se está deitado na cama a ver um filme ou uma série. Há exemplos como Wall Street (1987) ou Succession (2018-2023) que instalam no nosso inconsciente uma sensação de que quem trabalha em Nova Iorque tem um poder augusto, mesmo comendo coisas que têm o valor nutricional de lixo. Pensa-se enquanto se caminha por lá nas decisões que podem estar a ser tomadas por detrás das milhões (literalmente) de janelas que existem. Pensa-se nos dilemas morais que estão a sofrer. Lembro-me de andar e pensar, será que há ali algum trader que acabou de fazer muito dinheiro à custa da perda dos outros? Ou quando ia no metro e vi alguém que claramente trabalhava na área financeira, será que está a tentar tornar-se multi-milionário?

Os edifícios têm uma arquitetura magnânima, e raramente vi na Europa edifícios recentes com tanta grandiosidade como aqueles. Vi edifícios com menos de 100 anos a fazerem competição com as antiguidades da Europa. Em cada esquina de Midtown Manhantan, via-se o desejo de progresso do século XX, desde o Empire State Building ao Rockfeller Center. E esse ímpeto de progresso e força humana é inclusivamente vista mais atrás, na mera construção do Central Park. Os americanos, invejosos dos parques europeus como o Hyde Park em Londres ou o Bois de Boulogne em Paris, mandam abaixo dezenas de casas, e constroem um jardim todo de forma humana. Sim, aqueles lagos, rochas ou árvores não estavam ali, foi tudo pensado e executado. Em todos os cantos de Nova Iorque, sente-se esse antropocentrismo e esse sonho americano que tudo é possível, basta querer. Aliás, confesso que para mim enquanto andava pela cidade só pensava, como é que eles arranjaram tanto espaço para fazer as fundações de edifícios? Como é que eles conseguem passar tanto cabos de esgotos, eletricidade, gás, comunicações e ainda ter um metro por debaixo da cidade? Eu cogitava incessantemente para perceber como era possível sequer nos dias de hoje existir cidade assim.
Consegue perceber-se através de tudo isto como os EUA têm algo quê de genial. Mas mesmo nos arranha-céus, quando estamos lá dentro, sentimo-nos pequenos. Estar num 14º andar em Nova Iorque, é o equivalente de estar num 3 piso em Portugal. Só de pensar que o restaurante Portucale é no 13º andar de um dos maiores edifícios no Porto e que se impõe sobre a cidade, faz-me pensar como a dimensão é relativa, e como o edifício do Portucale em Nova Iorque seria o equivalente a um primeiro andar em Portugal. E o maior problema para mim foi: depois ver um arranha-ceús do Siza Vieira em Nova Iorque, o que nos impede de fazer algo igual aqui? Temos o génio, o que falta para pormos a genialidade dele em mais uso? E porque é eu tenho orgulho, porque no meio destas centenas de arranha céus, haver um arranha céus que foi feito por um arquiteto que, por acaso, até é do Porto e projetou um dos meus lugares favoritos neste mundo, a frente de Leça? O que me leva a ter orgulho de uma pessoa que não conheço, mas que partilha parte da minha terra comigo?

Quando estive lá, também fui ver um Comedy Show ao “The Stand”. A qualidade seguiu uma distribuição normal, mas algo me fascinou ainda mais. Um comediante era irlandês, outro era um homossexual persa, outra era uma mulher gorda negra, outra era uma senhora com aparência asiática, o host um Ginger, e não me lembro dos outros, mas não eram meramente caucasianos. Além desta diversidade de backgrounds e das piadas virem expor o racismo que existe nos EUA e de usarem a sua própria diversidade como força, umas das coisas que mais me preocupou foi eu ter percebido cerca de 80% das referências. A única que me lembro de não apanhar foi porque os americanos tiveram a ideia genial de vender água potável normal em latas. Chama-se Liquid Death, e eu, quando percebi o que era, não queria mesmo acreditar. Até a água potável torna-se um produto nos Estados Unidos. Mas bem, pensei no que seria se um americano, que viesse a Portugal e percebesse de português, fosse a um Comedy Club em Lisboa: será que iria perceber tão facilmente as referências americanas como eu os entendi? E isso é que novamente me preocupou. Eu, do outro lado do Atlântico, sabia tanto da vida e cultura americana como aqueles americanos que estavam a fazer um show de comédia. E havia algumas muito peculiares, sobre a Chinatown ou a Flórida. Duvido que um americano que estivesse pela primeira vez que estivesse em Portugal apanharia piadas sobre o Martim Moniz ou o Algarve.
Enquanto estava lá, tive a ideia maravilhosa de ir comer McDonalds, porque queria ver o quão era diferente daquilo que comemos em Portugal. Já tinha sido informado que o McDonalds não tinha boa fama nos Estados Unidos, mas qual é o meu espanto que quando vou lá e como um Big Mac e um McFlurry de Oreos e o sabor de ambos é exatamente igual àquele que como em Portugal. O poder deles é tão grande que uma das piores cadeias de fast-food nos Estados Unidos é uma marca dominante de fast food no nosso país e optamos muitas vezes por comer hambúrgueres com duvidosa qualidade em detrimento de uma maravilhosa bifana. Aliás, bastaram poucos dias lá para perceber por que são tão gordos: o pão é praticamente abolido em detrimento de bagels, o cheeseburguer é um prato tradicional e comer algo que não seja pré-cozinhado é um luxo. Aliás, após uma pequena investigação dá para entender, o objetivo da gastronomia americana é simples: ser o mais aditivo possível, alimentar o mais possível, e ser o mais fácil de consumo possível. Será que isso é o que é a América e fui vítima meramente da fast-culture, do fast-food, da fast-fashion, e do fast and furious?

E aí, veio-me ao pensamento tudo o que pensei antes e refleti. Será que é tudo aparições? Será que tudo é um hambúrguer do McDonalds? Noutra experiência sensorial que tive, esta experiência fez-me pensar. Times Square, uma praça no imaginário de toda a gente, cheira mal, é suja e é mal frequentada. Eu que fui lá, porque nos tempos da minha infância, eu lembro-me ver um programa da MTV, o TRL, do qual se via Times Square no fundo. Contudo, ainda hoje nas redes sociais, quando algum artista ou pessoa tem segundos naquela máquina propagandística americana é rapidamente aclamado, como se passar naqueles outdoors fosse algo de valor, quando inclusivé é necessário pagar para lá estar. E juro, quando saí de lá pensei, nem que me pagassem passava o ano novo ali. O cheiro, o ambiente, as pessoas. Todas as imagens da famosa bola de cristal a cair, estilhaçaram-se, como se de um sonho tivesse acordado.

No fim de tudo, o que me segurou em Nova Iorque foi o privilégio de ter ficado no lar de um amigo, que personifica Nova Iorque. Todas as noites me recebeu com tal energia, que me permitia no dia seguinte explorar a cidade recarregado do exausto do dia anterior. Nova Iorque é caótico. No entanto, saí de lá com uma preocupação. A cultura americana diluí-se de tal forma na nossa cultura que não nos apercebemos que somos tanto americanos como portugueses. Saí de lá com vontade de reclamar mais a minha identidade portuguesa e, ao mesmo tempo, de lá voltar. Quem sou eu? Quando acabei esta viagem a Nova Iorque, só me lembrava das barras de Chico da Tina: És um americanizado, bro / Tu não pensas, não tens identidade, bro / És um fakeeeeee.
Sugestões do cronista:
Chá do Deserto (1990) de Bernardo Bertolluci é um filme que critica antes do seu tempo aqueles turistas que querem ser “viajantes”. Começa com uma das frases que mais influenciou provavelmente os influencers de viagem “Tunner, we’re not tourists. We’re travelers.”. Ao longo de duas horas somos levados pelas paisagens áridas do norte de África, com diálogos dignos de publicações de quotes pela Comunidade Cultura e Arte.
Butcher’s Crossing (1960) é um livro de John Williams que narra a história de um jovem que abandona os seus estudos em Harvard para juntar-se a uma caçada no faroeste americano, no século XIX. Além das descrições brilhantes do faroeste, John Williams consegue guiar-nos ao interior das personagens sem nunca as descrever, e com isso entender melhor a ideia do sonho americano, que guiou a construção dos Estados Unidos da América.
Se estiverem interessados em acompanhar mais aventuras, sintonizem o podcast Périplo feito pelo autor deste texto.

