“Nuevo Orden”, de Michel Franco: uma fábula sobre a militarização do Estado e o conflito de classes
Este artigo pode conter spoilers.
“Nuevo Orden”, filme vencedor do Grande Prémio do Júri do festival de Veneza 2020, está disponível na plataforma de streaming Filmin. Sinopse rápida? Imagina um spin-off mexicano do Joker de Todd Phillips, sem palhaços nem atores do calibre de Joaquin Phoenix ou Robert De Niro.
O realizador Michel Franco convida-nos para um casamento da alta sociedade: dinheiro, água verde, drogas, invasões, pânico e, por fim, morte. A violência entre classes sociais abre a porta a um golpe de estado militar. A ficção assume um tom distópico, profético e fragmentado. A posição política ambígua que toma e consequente controvérsia que gerou, estende o debate para lá da sua hora e 26 minutos de duração.
Há uma cena sobre a qual quero escrever. Na Filmin começa aos 40min23s. Marianne (loura, caucasiana, saltos-altos, 25 anos) é arrastada para um campo de concentração. A evocação do fantasma de A Lista de Schindler é evidente: o vermelho que Marianne ostenta, contrasta com os edifícios e uniformes monocromáticos dos militares em revolta. Vozes zangadas e portas pesadas compõem uma marcha tensa.
Os captores levam-na para o interior de uma prisão iluminada ao estilo chiaroscuro. Numa entrevista ao BFI, o realizador afirma que: “A violência é vital para a arte – como por exemplo no trabalho de Goya, que é o meu pintor favorito – e eu estou a tentar ter os dois aspectos presentes (no filme).“
O pintor espanhol, na sua obra “El tres de mayo de 1808 en Madrid”, retrata um episódio violento da invasão napoleónica. Modernizando a técnica tornada célebre por Michelangelo Caravaggio, Goya esconde a cara aos opressores, deixa um espaço negativo entre os dois lados do conflito e dirige o olhar do observador através da luz.
Michel Franco, embora aplique as lições do seu pintor favorito, inverte parte da técnica, ao iluminar os prisioneiros no fundo, mas focando apenas Marianne em contra-luz. Mais do que estabelecer a profundidade e organização do espaço, esta iluminação acentua a tensão entre os dois lados da vedação. Marianne é obrigada a tirar os saltos altos e desenham-lhe um 16 na testa: a sua nova identidade.
Daqui, até ao final da cena, ficamos num plano médio e estático, onde prisioneiras (que, até então, não tinham aparecido no filme) são ajoelhadas à vez e interrogadas por homens sem rosto: querem informações sobre os seus parentes masculinos mais próximos. A principal diferença em relação ao plano anterior é o foco de luz sob as prisioneiras, pintando os seus rostos com sombras e reflexos.
Duas irmãs são as primeiras a serem interrogadas. A mais velha assume as respostas, numa tentativa de proteger a mais jovem. Uma mãe não-mexicana é arrastada a seguir. A força com que enfrenta a situação é colocada à prova quando lhe perguntam pelo marido e filhos. Um traço de desespero e saudade atravessa-lhe o rosto, mas é mascarado num piscar de olhos. A próxima prisioneira é coreana. Os seus olhos mudam constantemente de foco, a cara muda várias vezes de posição. É a que menos compreende a língua espanhola e a única que não sabe onde esteve e onde está. A cena termina com 16 a assumir, finalmente, a posição de interrogada.
Se o filme é uma fábula sobre a militarização do Estado e o conflito de classes, esta cena permite vislumbrar as suas consequências. A irmã mais velha torna-se mais protectora em resposta ao desespero da mais nova. A mãe vê a força e inteligência com que aborda o interrogatório serem dissolvidas pela mera menção do seu marido e filhos. A resposta da jovem coreana tanto pode indiciar turismo, uma sub-cultura completamente alheia à realidade local e/ou tráfico humano. Marianne aceita a sua nova condição: assustada, mas resignada. Estes millennials, tão existencialistas…
Na supramencionada entrevista a Paul Julian Smith do British Film Institute, o realizador admite: “Houve um crítico mexicano que disse que Nuevo Orden é menos uma distopia e mais uma exageração da situação no México. Na realidade, o filme é ambas as coisas.” Começa como drama familiar, acaba como filme de guerra. Franco explica no início o porquê de chegarmos ao fim. Como a violência gera arte. E a arte reflecte o nosso lugar nessa violência.