Num mundo em streaming qual será o futuro do cinema português?
Nos últimos anos assistimos à popularização das plataformas streaming e a sua introdução como produtoras independentes no mundo cinematográfico. O que no início era considerado uma forma inovadora e alternativa de consumo audiovisual, hoje produz alguns dos filmes mais populares, e que marcam a sua presença na lista de nomeações e vitórias das maiores premiações de cinema. Pelo mundo fora o streaming chega cada vez mais longe, somando milhões de assinantes, e Portugal não é exceção. Contudo esta inserção das produções de streaming na cultura cinematográfica levanta algumas questões: Qual o impacto destas plataformas em Portugal? São concorrência para os cinemas? Qual a opinião dos profissionais de cinema? Qual o futuro dos serviços streaming em Portugal?
As plataformas de streaming como, por exemplo, Netflix, HBO, ou Prime vídeo reúnem milhões de clientes ao redor do mundo, entre os quais estão diversos portugueses. Em outubro de 2015 a Netflix chegava a Portugal como a primeira grande plataforma de streaming, e desde então o serviço tem registado um aumento de assinaturas constante de ano para ano, embora tenha perdido quase um milhão de subscritores no segundo trimestre de 2022. No total, segundo estudos do Marktest de 2021, pelo menos um em cada quatro portugueses subscrevem estas plataformas de entretenimento streaming, contabilizando mais de 2,5 milhões de portugueses que usufruem destes serviços. Na liderança de audiência destas plataformas temos a Netflix, que segundo estudos da Meios & Publicidade, conta com 79,1% dos utilizadores, fazendo da plataforma o serviço de streaming mais utilizado em Portugal. Outras distribuidoras semelhantes também vão ganhando cada vez mais notoriedade, como é o exemplo da HBO, a segunda plataforma de entretenimento streaming mais consumida pelos portugueses, e que acumula 25,2% dos assinantes nacionais. Contudo, estas plataformas vão mais longe do que serem simples distribuidoras de produções estrangeiras, começando a investir no mercado audiovisual nacional.
Nos dias de hoje já podemos assistir tanto a filmes nacionais independentes a estes serviços que foram comprados pelos mesmos e agora pertencem ao seu catálogo, como a produções nacionais originalmente criadas em parceria com as plataformas, como é o exemplo de “Glória”, a primeira série portuguesa original da Netflix.
Vantagens e desvantagens dos streamings
Esta introdução dos streamings no cenário audiovisual português tem despertado diversas opiniões entre os peritos, tanto pelas suas vantagens como desvantagens. “Chegar a uma plataforma e podermos assistir a duas temporadas num fim de semana é uma relação que é totalmente nova, é o chamado “on demand”. Com estas plataformas o consumo torna-se completamente avassalador. É como ter um acervo disponível para se consumir quando se quiser”, declara Luís Lima, membro da organização do festival de cinema “Porto/Post/Doc”, sobre as vantagens das plataformas de streaming.
Sobre as desvantagens da influência destas plataformas na cultura cinematográfica portuguesa, Luís Lima alega que “perde-se o caráter autoral de uma obra, e ganha-se o caráter de estúdio. Nós sabemos que isto é Netflix, ou é HBO, e sabemos qual é o estilo de cada plataforma. Apaga-se o lado autoral, e a relação com o objeto no tempo, porque este passa a ser um objeto de consumo rápido.”
Por outro lado, a realizadora e argumentista, Tota Alves, teve a oportunidade de colaborar com a empresa Netflix no processo de seleção de algumas das produções portuguesas que hoje constituem o catálogo da mesma, e considera que “as plataformas de streaming o que fizeram foi competir diretamente com o cinema e televisão, mas de certa forma democratizaram o acesso ao entretenimento. Pode-se até questionar se o entretenimento é de qualidade ou não, mas isso é uma questão pessoal.”
Cinemas ou Netflix?
As plataformas deste teor crescem cada vez mais e esta recente popularização do “on demand” tem assustado alguns autores e profissionais de cinema em Portugal. O realizador e produtor Paulo Carneiro revela que teme a hipótese de abandono das salas de cinema em preferência das plataformas de streaming. “É assustador essa ideia, mas a verdade é que em termos de cinema português, as plataformas já ultrapassam. Aliás os números de expectadores do cinema nacional são sempre muito baixos. O que se começa a perceber é que os espectadores vão cada vez menos aos cinemas, e preferem ver os filmes em casa”, declara Paulo Carneiro.
Os cinemas portugueses têm registado a cada ano bilheteiras mais baixas. O covid-19 desempenhou um papel bastante crucial nesta disputa de audiências entre os cinemas e as plataformas. Em 2020, com as salas de cinema fechadas e o país em quarentena, milhares de portugueses voltaram-se para os serviços streaming em busca de entretenimento. Segundo dados do Instituto de Cinema e Audiovisual (ICA), a pandemia originou uma quebra de 75,55% em audiência e receitas em 2020 comparativamente ao ano anterior. Em 2021 houve um aumento de mais de 43% da audiência em relação a 2020, totalizando assim cerca de 5 milhões espectadores, porém, este resultado permanece como um número bastante reduzido comparativamente ao valor pré-pandemia de 2019, que totalizou 15,5 milhões.
Os baixos resultados de bilheteiras podem estar também diretamente relacionados com o número de produções cinematográficas que diminuiu parcialmente durante a pandemia, principalmente no mercado nacional onde a produção se mantinha cerca de 40 a 50 filmes por ano no período pré pandemia, e passou a uma média de 20 a 30 filmes por ano durante a pandemia, segundo dados do ICA.
A queda de espectadores nas salas de cinema e o aumento exponencial destas plataformas “on demand” inquietam diversos peritos da área, contudo, Luís Lima reitera que, apesar desta evolução das plataformas de streamings no mercado cinematográfico, a experiencia em streaming “não é a mesma experiência que ir ao cinema em que temos de sair de casa, comprar bilhete, ou seja, tornar o filme num acontecimento, um espetáculo”, e conclui que, apesar da diminuição de audiência nas salas de cinema, “a experiência de cinema não acaba exatamente por causa do dispositivos em si, que torna uma experiência diferente que não desaparece tão facilmente”.
A “mudança inevitável”
Ao redor do mundo cada vez mais as produções streaming conquistam o seu lugar não só entre o público, mas também entre a critica especializada. Atualmente grandes premiações de cinema, como os Óscares e Globos de Ouro, nomeiam e premeiam várias produções criadas por estas plataformas. Na mais recente edição dos Óscares, considerada a maior premiação de cinema, fez-se história com a vitória de Melhor Filme atribuída à obra “Coda: O Ritmo do Coração”, uma produção original e exclusiva da plataforma de streamings Apple Tv, tornando-se assim a primeira obra original dos streamings a vencer esta que é considerada a mais importante categoria da premiação. Deste modo torna-se impossível negar o poder que as plataformas de streaming vêm obtendo na indústria, contudo, em Portugal, este ainda é um tema que continua a dividir opiniões perante os profissionais da área.
O crescimento das plataformas de streaming em solo nacional aguçam a curiosidade da comunidade de cinema e audiovisual, contudo, há quem encare esta mudança com bons olhos. Sobre a introdução dos serviços streaming na cultura portuguesa a realizadora e argumentista, Tota Alves afirma, “hoje há lugar para tudo o que seja audiovisual. Antes o cinema era mudo, colocou-se som e toda gente considerou um atentado ao cinema, depois vieram as cores, e também se estranhou. Se formos sempre resistir à mudança que é inevitável”, hesita, suspira com uma feição cansada e prossegue, “eu simplesmente fico contente quando vejo um bom filme numa plataforma, porque sei que há pessoas que vivem em zonas sem cinemas e que não vão ter de percorrer 100km para ver um filme. Claro que eu gostava que houvesse cinema perto dessas pessoas, mas não há.”
Por outro lado, Luís Lima não nega o grande futuro que estas plataformas têm pela frente, mas partilha a sua especulação sobre o que considera que vá acontecer. “Eu acho que sim, têm futuro pela frente, mas também percebemos que a própria Netflix já está um bocado em decadência, ou seja, aquela febre inicial da Netflix já não está tão pujante, porque há concorrência. O que eu acho é que com o aparecimento de novas plataformas de streaming elas vão acabar por se tornarem parecidas com os canais de televisão tradicionais, ou seja, o que pode acontecer é uma espécie de despersonalização das plataformas, e tornarem-se cada vez mais canais” conclui Luís Lima.
O melhor dos dois mundos
Apesar das suas diferenças já são vários os casos de união entre o mundo dos streamings e das salas de cinema. A 16 de outubro de 2015, o primeiro filme produzido pela plataforma Netflix, “Beasts of No Nation”, chegava às salas de cinemas, tornando-se a primeira produção híbrida, uma produção em streaming e nas salas de cinema. Desde então, ao longo dos anos, outras obras de semelhantes origens seguiram o seu caminho até às salas de cinema numa tentativa de obter o que pode ser considerado o melhor dos dois mundos. Contudo, Luís Lima relata “há espaço tanto para filmes que estreiam somente nessas plataformas, e filmes que vão para o cinema, porém, hoje nós vemos que um filme que já está disponível nas plataformas de streaming e vai para cinema, conseguimos ver que fica muito pouco tempo em cartaz”
Futuro do cinema nacional
Em relação ao futuro do cinema nacional, e como este se irá adaptar a estes novos serviços, ninguém tem uma resposta exata, porém, todos os entrevistados acreditam que as plataformas de straming possuem ainda um grande percurso pela frente. Entre filmes nacionais que, apesar de não serem produções streamings, constituem o catálogo dessas plataformas, e produções portuguesas originais dessas mesmas produtoras, a cultura portuguesa parece ganhar cada vez mais espaço no mundo dos streamings. Contudo, nada indica que o fim do cinema tal como o conhecemos se aproxima, pois, apesar das drásticas quedas de bilheteiras e número de produções, os cineastas portugueses mantem o seu empenho em desenvolver mais conteúdos, e a fé de que, de alguma forma, estes dois universos aprendam a coexistir em harmonia. E para aqueles que temem pelo seu fim a realizadora e argumentista Tota Alves afirma que “a experiência de cinema vai ter sempre os seus defensores, porque tudo no que consiste a experiência de cinema é completamente distinto da experiência que temos em ver um filme em casa e essa experiência de cinema vai ser sempre outra coisa.”
Por fim, resta-nos acompanhar de perto a evolução destas plataformas, e perceber se realmente vêm para ficar, se o cinema tradicional irá ou não sucumbir a esta inovação, ou se as duas vertentes irão aprender a coexistir com as suas diferenças.