O 25.º FIMFA tornou-nos melhores espetadores

por Tiago Bartolomeu Costa,    3 Junho, 2025
O 25.º FIMFA tornou-nos melhores espetadores
“Uma casa de bonecas” / Fotografia de Johan Karlsson
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Em Maio, o centro do teatro é o FIMFA, o festival internacional de marionetas e formas animadas que desde há 25 anos ocupa os principais teatros da cidade, com uma programação que continua a não encontrar par na coerência, consistência e atenção ao experimentalismo e ilusão cénica, em tudo acompanhada e validade por públicos que, espantosamente, confiam e esgotam as diferentes salas.

Não é uma exceção nem um acaso, e importa sempre sublinhar: deve-se tudo à excelência e dedicação de Luís Vieira e Rute Ribeiro, diretores artísticos de A Tarumba, companhia que programa um festival que, depois de João Paulo Seara Cardoso e do seu Teatro de Marionetas do Porto – cujo museu (Rua de Belmonte, 61) merece uma visita para dinamitar todas as nostalgias e caixas onde se arrumam ideias feitas sobre a imaginação e a liberdade – mais contribuiu para a  renovação da relação do teatro de marionetas e formas animadas em Portugal. Infelizmente sem eco na programação regular dos mesmos equipamentos culturais que os acolhem no mês de Maio, mas não se furtam a alimentar, à máquina e há anos, muita da repetição que alguns festivais trazem para o conjunto da oferta cultural da cidade. A mesma cidade que, tendo um projeto municipal de Museu da Marioneta, aceita que se possa estar de costas voltadas para um festival e uma companhia há vinte e cinco anos exigente consigo mesmos e, por consequência, para com as salas e os públicos, insistindo em não defender o que realmente projeta, singulariza e atrai pensamento, criatividade, pensamento e investimento culturais.

Dramas / Fotografia de Margarida Barbedo

Resta-nos, por isso, este momento, sempre celebratório e efetivamente de risco que traz a Lisboa uma plêiade de atores internacionais coproduzidos pelos mais importantes festivais, redes e teatros europeus, mas não só, que chegam ao FIMFA para um estado da arte do teatro de marionetas. E que não se cansam de defender a preciosidade que Lisboa tem, mas que a Lisboa institucional continua a não priorizar.

A frase que escolheram destacar no texto de apresentação da edição deste ano, assinada pela encenadora do espetáculo de abertura, a norueguesa Yngvild Aspeli, é disso sintomática: “O teatro de marionetas é uma forma que se reinventa constantemente e que atravessa, sem medo, as fronteiras de outras disciplinas artísticas. É uma expressão artística que transcende a classificação. Não é apenas uma forma, ou uma técnica, é uma maneira de ver as coisas, uma linguagem, um estado de espírito.”

Dramas / Fotografia de Pedro Sardinha

Cinco dos espetáculos a que pudemos assistir este ano apontam em direções complementares, com a preocupação de uma leitura curatorial que não se impõe, antes expande uma relação com as escalas, as técnicas e as referências. Desde logo, na própria criação que A Tarumba não se coíbe em estrear no seu próprio festival, como se reclamasse, e lembrasse, a origem de tudo, um olhar criativo, autoral e cúmplice com a criação artística. O brevíssimo Dramas curtos em miniatura (São Luiz Teatro Municipal, 20 e 21 Maio), construído sobre micropeças de um dos reformadores estruturais do século XX teatral, Edward Gordon Craig, trabalha referências de uma ideia de cultura pop, e popular, anteriores à convencionalidade contemporânea, misturando o cinema como pináculo da fama, as revistas de mexericos sobre celebridades como literatura fundamental, e uma bonomia pré-tragédia servidas por figuras de papel articulados, objetos do quotidiano adaptados e mini-câmaras manipulados por Luís Vieira e Rute Ribeiro (assistidos por Rita Caetano Soares), na fronteira entre a insolência e a gravidade. Tropical e surrealista em doses iguais, os textos – e as transformações a que são sujeitos pelos manipuladores – vêm de um tempo onde a memória era, sobretudo, projeção, e a marca identitária de atores, celebridades mundanas, escritores de férias, amates e bons-vivants, era projeto de afirmação aspiracional. O espetáculo não se leva demasiado, para bem de todos e de uma ideia de convivialidade que se faz rara entre palco e plateia, porque nem de participação coletiva nem de doutrina.

É da mesma ordem de jogo entre artistas e público que se faz Us, da companhia belga Mignight (30 Maio a 1 Junho, Teatro do Bairro), espetáculo para dois intérpretes (Joris Verbeeren e Simone Scaini), cem facas e um impressionante controlo técnico que torna artesanal o que não se intui ser programado, e usa a seu favor a ilusão para parecer improviso e experimental o que é controlo, precisão e minúcia nos tempos dos gags, no domínio da manipulação e nos códigos do novo circo.

“Us”, da companhia belga Mignight / Fotografia de Company Midnight

Num palco cheio de elementos interligados, dois atores-manipuladores desafiam o perigo real do erro, do corte e da navalhada, com um jogo autodestrutivo onde o que parece banal é, como sempre, resultado não só de treino e de confiança, mas de empatia com a sala. É de um prazer desbragado, e em doses iguais infantil e cerebral, na tentativa de antecipar o que é truque e o que será técnica, numa hábil combinação, e contaminação, entre prazer e tecnologia. O que é invisível, esconde-se na pretensa exposição de elementos que caem do teto, facas que atravessam paredes, projetores que explodem, um café que se faz enquanto se espera pela faca a espetar num braço, a rebentar balões ou atirada muito perto de um braço, de uma orelha ou de uma gargalhada espontânea.

Ainda, o brevíssimo O Quebra-nozes: um ballet de vegetais (Museu de Lisboa – Teatro Romano, 31 Maio e 1 Junho), da companhia checa Khwoshch Group, inusitado divertimento para cenouras, nozes, beringelas, rábanos, nabos, couves, gengibre e alhos, é um jogo de pequena escala feito a partir dos movimentos imaginados por uma bailarina profissional (Anastázie Dobrodisnka) e uma marionetista (Daria Gosteva), que resumem, em três atos e 26 minutos, um bailado já de si sobre a ilusão, onde um solo pode ser interpretado por duas batatas-doce, e o exército de ratos é substituído por perversas batatas que fogem com a chegada de uma imensa couve galega. Tudo isto se passa num minúsculo teatro iluminado à luz de velas, onde a manipulação por varetas imprime a um bailado rico em imagens e aproximações de cariz militar disfarçadas em conto de natal inocente, a dimensão sonhada e efabulada do bailado. Não precisamos do esforço de aproximação e de metáfora, as substituições não se querem profundas, apesar de o desenho de movimento respeitar tanto a coreografia de Petipa para a partitura de Tchaikovsky, como a morfologia dos vegetais. As leituras políticas e implicações narrativas, ficam melhor depois da sopa comida, em resumo.

“Uma casa de bonecas” / Fotografia de Johan Karlsson

Em Uma casa de bonecas (São Luiz Teatro Municipal, 8 a 10 Maio), Yngvild Aspeli colocava-se em cena escondendo-se através de uma ideia de construção de uma figura feminina presa na sua própria teia, expondo o que, com Ibsen, seria intenção, projeção e moral para uma sociedade presa por fios. A produção da companhia franco-norueguesa Plexus Polaire usava marionetas de tamanho humano para um jogo de complexas ligações entre subentendidos sociais e desejos reprimidos, que colocavam o drama numa linha muito ténue entre a ilusão e o confronto com as consequências dos atos da personagem principal. O eixo central desta encenação estava na relação estabelecida entre a atriz e a equipa de marionetistas, permitindo que as restantes personagens agissem como projeções de Nora, entre a moral denunciadora e o oportunismo tácito, entre o espanto e a inocência. Ao se colocar no centro de uma casa feita teia de uma aranha que é o próprio novelo de mentiras e subterfúgios que foi criando, para se manter à altura do que é de si esperado, a personagem de Nora serve o propósito de denuncia da teatralidade social a que nos podemos subjugar. As marionetas em grande escala são, aqui, emanações diretas das ideias feitas sobre os outros, e do confronto dessa ilusão com o real.

“Uma casa de bonecas” / Fotografia de Tomas Lauvland Pettersen

Com A Sagração da Primavera, dos italianos Dewey Dell (Teatro Variedades, 22 a 24 Maio, em coprodução com o Teatro Nacional D. Maria II), é a partitura de Igor Stravinsky, contínuo escândalo musical e coreográfico que se revela, uma vez mais, matéria de inúmeras e fascinantes apropriações. Já tínhamos visto com Sacre (Xavier LeRoy, 2007, passou pelo Maria Matos em 2009), o modo como nos movimentos do maestro, como se fossem os de um bailarino, nos podíamos aproximar de uma ideia de reinício, como se a música fosse a matéria formal através da qual os quadros de uma rússia pagã que Nijinsky construiu, fossem simultaneamente, dionisíacos e de uma gravidade moral atordoante. Depois, num espectro artístico distinto, o que o realizador António Campos monta em A Almadraba Atuneira (1963) – filme sobre a pesca do atum entre a primeira e fim do verão de 1962, partindo do desaparecido arraial da ilha da Abóbora, ao largo de Tavira –, onde a luta corpo a corpo, entre homem e natureza, se faz ao som das sacrificiais sequências de Stravinsky, já havia revelado como há algo de instrinsecamente natural no desejo de violência e ocupação. Estes dois exemplos trabalham num multiverso referencial para o qual somos transportados por uma coreografia que atravessa a história da dança, pré e pós-Ballet Russes, de Louis Fuller a Martha Graham, trabalhando a arqueologia da dança como a memória de um universo mais amplo, onde insetos e humanos escalam de uma convivência para uma interposição. É um espetáculo a todos os níveis extraordinário, tanto no trabalho em escala, desenhado por uma luz que ofusca e amplia para lá da antecipação e da vontade de querer ver, como no trabalho de movimento, que traz para si uma relação intrínseca entre pele, corpo e lastro. O que parece um casulo depressa se transforma numa gruta onde podem entrar soldados, que afinal são e não são insetos, porque a ideia de contaminação, de usurpação, de destruição num espetáculo que faz do palco um cenário de guerra – como terá sido aquando da estreia em 1913 – pode, afinal, ser só a violência microscópica e entomologicamente analisada. É um espetáculo visceral, essencial, que nos manipula em todos os planos e que faz com que a dança e a máscara se fundam num trabalho de excelência e atualização das dimensões intrínsecas para o mal.

A singularidade e a irreverência que o FIMFA trouxe para o mês de Maio, em Lisboa, pede que marquemos no calendário as datas do próximo ano, e exijamos estar à altura do que nos prometem trazer.

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