O aborto voltou ao debate público e é importante resistir

por Rui Maciel,    23 Junho, 2025
O aborto voltou ao debate público e é importante resistir
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No final do mês passado, um anúncio televisivo contra a despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), patrocinado por Miguel Milhão, reacendeu um debate que ficou decidido há quase 20 anos. Este episódio veio lembrar-nos que direitos conquistados não são direitos garantidos. É mais importante do que nunca resistir para proteger as grandes conquistas civis do início do século XXI.

Neste texto, pretendo em primeiro lugar expor a estratégia usada por Miguel Milhão e, em segundo lugar, relembrar motivo de o “Sim” ter vencido o referendo de 2007 — e porque continua a ser crucial defendê-lo.

Depois da exibição do anúncio televisivo, assistiu-se a uma clássica manipulação da agenda mediática por parte de setores reacionários. O método é conhecido: lançar algo deliberadamente provocatório para captar atenção, forçando a reação emocional dos progressistas, que respondem com insultos e processos judiciais. Embora bem-intencionadas, estas respostas acabam muitas vezes por centrar o debate na figura polémica e na discussão sobre a liberdade de expressão, afastando-se do tema essencial. No final, os provocadores posicionam-se como mártires da liberdade de expressão, distorcendo a discussão e radicalizando o espaço público.

“É mais importante do que nunca resistir para proteger as grandes conquistas civis do início do século XXI.”

Foi exatamente este o cenário. Diversas associações avançaram com ações contra Miguel Milhão e o foco mediático deslocou-se para esses processos e para a narrativa da sua liberdade de opinião. Não tenho uma solução perfeita para lidar com estas situações, mas algo é certo: a forma como se tem respondido tem contribuído para a ascensão vertiginosa de movimentos de extrema-direita e para retrocessos civilizacionais, como se tem vindo a verificar nos Estados Unidos da América.

Não nos iludamos: a democracia enfrenta hoje formas subtis de distorção. Assistimos a um preocupante desequilíbrio de poder quando indivíduos com grandes recursos financeiros compram espaço mediático e moldam a opinião pública ao seu gosto. Em Portugal, não há qualquer sinal real de vontade social ou política para reverter a legislação da IVG. Este episódio expõe uma narrativa perigosa, em que o privilégio económico se confunde com legitimidade moral. Miguel Milhão, embora tenha o direito de expressar a sua opinião, utiliza táticas de manipulação e provocação que corroem o debate democrático, desviam o foco das questões essenciais e contribuem para um ambiente mediático radicalizado. É imperativo não cair na armadilha emocional que figuras como esta montam — cada visualização, cada comentário indignado, só alimenta a máquina de provocação que lhes garante visibilidade e reforça a ideia de que têm poder sobre a vontade coletiva. Não devemos permitir que o espaço público se transforme no palco de vaidades de quem acredita que o dinheiro lhes dá direito de reescrever direitos conquistados.

“Os provocadores posicionam-se como mártires da liberdade de expressão, distorcendo a discussão e radicalizando o espaço público.”

Contudo, ignorá-los não é opção. A visibilidade e a plataforma de que dispõem tornam impossível simplesmente deixar passar ao lado — esse tempo acabou. A única resposta legítima é combater estas ofensivas recordando, de forma clara e prática, as consequências positivas da despenalização do aborto em Portugal.

Este não é um debate entre “pró-vida” e “pró-escolha”. Quem se afirma “pró-vida” esquece-se dos milhares de mulheres que já morreram — e continuam a morrer — por falta de acesso a cuidados de saúde. O aborto clandestino mata. A Organização Mundial de Saúde destaca que o aborto é um dos procedimentos médicos mais comuns no mundo e que só é perigoso quando é feito sem acompanhamento profissional. Em 2012, estimou-se que, nos países em desenvolvimento, cerca de 7 milhões de mulheres receberam tratamento por complicações decorrentes de abortos inseguros. Em Portugal, antes da atual lei, a interrupção clandestina da gravidez era a terceira maior causa de morte materna. Após a despenalização em 2007, essa causa desapareceu das estatísticas. Um exemplo de como a política pode salvar vidas.

“A democracia enfrenta hoje formas subtis de distorção. Assistimos a um preocupante desequilíbrio de poder quando indivíduos com grandes recursos financeiros compram espaço mediático e moldam a opinião pública ao seu gosto.”

A história recente ensina-nos muito sobre como continuar a fazer a resistência e lutar pelos direitos adquiridos. Em 1998, após a vitória do “Não” no primeiro referendo, Paula Rego eternizou o sofrimento das mulheres na sua série “Untitled: The Abortion Series”. Em oito pinturas, a artista retratou mulheres devastadas após realizarem IVGs clandestinas. Uma tese de mestrado demonstra o impacto político destas obras. Elas foram (e são) uma inspiração de resistência, evidenciando o poder da arte na luta política. A sua força visual obriga-nos a empatizar com as mulheres, muito mais do que com os moralistas de ocasião.

Vista da exposição “Paula Rego e Adriana Varejão. Entre os vossos dentes” / Fotografia de Pedro Pina – Fundação Calouste Gulbenkian

Outro exemplo notável foi o famoso sketch dos Gato Fedorento, em 2007. Simulando Marcelo Rebelo de Sousa — um dos rostos do “Não” —, a personagem diz: “Se a pergunta fosse ‘concorda com a despenalização da mulher que aborta num sítio todo badalhoco sem condições nenhumas’, eu votava que sim. Agora num estabelecimento de saúde autorizado, não.” A cena termina com uma deliciosa incoerência: “O aborto é proibido, mas pode-se fazer.” Este resumo humorístico ilustra com mestria o verdadeiro objetivo dos opositores à despenalização: manter as mulheres reféns da clandestinidade e do sofrimento, como as figuras de Paula Rego.

“Não devemos permitir que o espaço público se transforme no palco de vaidades de quem acredita que o dinheiro lhes dá direito de reescrever direitos conquistados.”

Outro argumento recorrente — e enganador — é o de que a legalização do aborto leva a um aumento do número de interrupções. Na realidade, a tendência em Portugal tem sido de diminuição contínua no número de IVGs desde a aprovação da lei, com a exceção de 2022. Ainda assim, os números atuais continuam abaixo dos registados antes da despenalização. Ou seja, paradoxalmente, quem clama por defender a vida estaria a propor o fim de uma lei que, precisamente, contribuiu para reduzir o número de abortos.

“Não podemos permitir que o espaço público volte a ser dominado por quem quer atirar as mulheres para a clandestinidade e para o sofrimento.”

Por fim, infelizmente, o debate sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez não está encerrado. E não podemos permitir que o espaço público volte a ser dominado por quem quer atirar as mulheres para a clandestinidade e para o sofrimento. A melhor forma de resistir não é o silêncio, nem a censura — é falar. Falar sobre as vidas salvas pela despenalização. Sobre o fim das mortes maternas em Portugal devido a abortos inseguros. Resistir é não deixar que nos façam esquecer do sofrimentos das mulheres. E a melhor arma é levantarmos a voz e falar das vidas salvas por todos os portugueses que votaram Sim no referendo de 2007.

Sugestões do cronista:

Para quem quiser aprofundar este debate e refletir sobre o papel da cultura na resistência política e social, deixo duas sugestões. 

A primeira é a exposição Entre os Dentes, na Fundação Calouste Gulbenkian, no Centro de Arte Moderna. Uma mostra que reúne obras de Paula Rego e Adriana Varejão, incluindo algumas das icónicas pinturas da série “Untitled: The Abortion Series” de Paula Rego. Ver estes trabalhos ao vivo, no espaço certo, é uma experiência visceral e urgente, especialmente no contexto atual em que o debate sobre a IVG volta a ganhar força.

A segunda sugestão é recuperar o vídeo original da campanha “Assim Não”, onde Marcelo Rebelo de Sousa, na altura defensor do “Não” no referendo de 2007, argumentava que a lei portuguesa permitiria a uma mulher abortar apenas porque “sim” ou devido a uma ligeira depressão. Um registo que vale a pena rever, pois revela bem a forma como, na época, se procurava descredibilizar a autonomia e a saúde mental das mulheres. Ver para crer.

Por último, recomendo vivamente o filme “Sirat“, de Oliver Taxe. Uma das experiências audiovisuais mais marcantes que tive em sala de cinema. Desde os primeiros minutos, mergulhamos numa rave tecno em pleno deserto de Marrocos, para depois acompanharmos a viagem de um pai desesperado à procura da sua filha por paisagens áridas e deslumbrantes. “Sirat” é um filme que precisa de ser visto no cinema — a sua essência e intenção perdem-se completamente num ecrã de computador.

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