O absurdo também pode fazer sentido
Desafiaram-me a escrever. Mas, então, tenho que escrever uma crónica? Sobre qualquer tema? Poderia escrever sobre o preço do pão, sobre as minhas resoluções para este ano ou, talvez, sobre o ciclo repetitivo da vida. Mas não me apetece particularmente escrever sobre qualquer um desses. Assim, não tenho tema.
Pensando bem, também há espaço no mundo das crónicas para isso. Crónica é liberdade textual, não é? O local para o tudo e para o nada, onde as divagações fazem perfeito sentido e o sem nexo e inexequível encontram um lar.
São 3 da manhã e tenho tendência para oscilar entre o planeamento meticuloso e desgastante de textos – provocado pelo meu zeloso perfecionismo, que ocasionalmente surge, sempre sem ser convidado – e a escrita impulsiva e sem qualquer tipo de ponderação. Nem me atinge. Sou o meio, não o início. A mão mexe sozinha e a caneta despeja marcas de tinta na folha. Sem tema é complicado. Mas é um desafio que imponho a mim mesma.
A crónica sem tema e sem sistema.
Só assim é que faz sentido. Quando nada faz sentido e não existe qualquer controlo. As palavras fluem e flutuam à nossa volta; não as podemos apanhar, escapam à nossa compreensão. Elas não são nossas – e nunca serão. Possuem vontade e desejos próprios. Nós somos apenas o recetáculo, a frincha, o veículo pelo qual se exprimem. Transbordam do mundo abstrato para o mundo concreto. De concreto pouco têm; podem significar tudo e nada, abranger a partícula mais ínfima ou o cosmos na sua completa imensidão.
Concreto. Mas nem palpáveis são. Como poderiam ser concretas? Coerência, ordenação, gramática, pontuação – tudo convenções, ideias e teorias que criamos, mas que significam absolutamente nada. E se elas não concordarem? Como é? Pedimos-lhes com gentileza? “Deixas que ponha uma vírgula aqui?”
O absurdo de tudo isto. O absurdo da existência e do ser humano. O absurdo de termos criado as palavras e os significados, mas, quais filhas emancipadas, estas terem crescido e nos ultrapassado. Cresceram e tornaram-se algo superior a nós. A Humanidade desaparecerá, mas as palavras continuarão aqui. Quando já não houver ninguém para as proferir, vociferar, ouvir, por elas se fascinar; quando os ossos do último ser humano tiverem desaparecido, quando cinzas e poeira cósmica forem tudo o que ondula à superfície do planeta – juntamente com uns pontinhos de luz, claro está – elas cá estarão. Gravadas em papel, rocha, computadores, bases de dados, bunkers ou estações espaciais. Em ondas pelo espaço, ainda a navegarem, para cada vez mais longe, na esperança de serem captadas e compreendidas por outra civilização. Na forma de entidades etéreas. Elas cá estarão.
Rebeldes e livres. Infinitas e incontroláveis. Imutáveis, mas em eterna evolução (seja lá o que isso for).