O activista desejável
É mais fácil do que parece. O activista desejável não precisa de ser inteligente. Pelo contrário. O seu desconhecimento face ao assunto em que milita é uma vantagem. O seu desconhecimento é, aliás, inversamente proporcional à força das suas convicções. Um activista preocupado com apreender a diversidade de pontos de vista disponíveis sobre um mesmo assunto pode paralisar sob o peso da escolha. Ou tornar-se moderado. A moderação está para o activismo como chantilly para a sardinha. Não combina.
A criação de um activista depende de uma série de factores contextuais e esses dependem em última análise do tempo em que o sujeito vive. Não é possível condicionar o sujeito a adoptar uma causa demasiadamente datada, por mais justa e moral que esta pareça ser. Cada época tem o seu caleidoscópio de activistas e activismos e é dentro desse registo que se deve empurrar o sujeito para a escolha. Algumas causas são praticamente intemporais, indo e vindo em ciclos de indignação consoante a opinião pública as coloca mais ou menos em foco. Há assim períodos em que a floresta amazónica é o epicentro da revolta. Noutras ocasiões, uma catástrofe em África recorda-nos momentaneamente de que há fome no mundo. Algumas causas são circunstanciais e existem apenas enquanto o problema não se resolve ou enquanto a indignação não encontra melhor ninho. É o caso de uma guerra, por exemplo, ou de uma espécie exótica ameaçada.
Embora este tipo de activismo seja incapaz de mobilizar o sujeito para além do tempo da causa que lhe subjaz, é no entanto uma porta de entrada para o mundo da indignação geral onde o recém-formado activista pode rapidamente encontrar terreno mais fértil para a sua pulsão justiceira.
Mas as causas fundamentais são aquelas contemporâneas ao sujeito. Um dos pilares do activismo é a sua forte componente moral. O activista tem de sentir que está do lado certo da história e que de algum modo participa no gesto geral da criação de um mundo melhor. Tal como no caso da inteligência, não é necessário que de facto o sujeito se encontre mesmo do lado certo. Precisa apenas de acreditar que está. A complexidade moral e as subtilezas éticas são dispensáveis. Só iam confundi-lo. E a confusão pode levar ao esclarecimento ou ao imobilismo, sendo qualquer um deles prejudiciais à manutenção do moralismo justiceiro que move o activista.
Há que alimentar-lhe diariamente a indignação. No início convém ministrar-lhe doses generosas de injustiça. Podem ser requentadas. Basta colhê-la das páginas da história. Com o tempo, o paladar do activista torna-se mais refinado e já não aceita senão indignação fresca. A sorte é que nesse período da sua evolução, o activista precisa de muito menos alimento; qualquer espinha de iniquidade serve. O activista transforma a mais pequena das ocorrências num manjar capaz de saciar uma mesa de cardeais.
O que o activista não dispensa é a companhia da causa. Podem não ser muitos, mas têm de ser engajados. Para o activista, todos os aspectos e momentos da vida reflectem de algum modo a causa a que se dedica. O activismo é um oásis à volta da qual se estende um imenso deserto, mesmo que nesse deserto vivam e cresçam pessoas. Enquanto o mundo não reflectir com precisão quântica o modo como o activista o deseja ver reflectido, está fundamentalmente errado. Para tal é preciso converter a mole ignara para a causa que assume o primeiro lugar no pódio dos males do mundo. A companhia reforça o activista, ampara-lhe as crises de fé e escuda-o da iniquidade que vê por toda a parte.
Por último, convém que que o activista seja relativamente cego para a distinção do mundo em que vive e da realidade da sua causa. A maior parte dos activistas não habitam nos motivos da sua indignação. Felizmente, o humano vem equipado de série com a má-fé necessária para ser ambliope face à mais evidente contradição. Sigam-me para mais receitas.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.