O António não estava de serviço. Mas fez o que tinha a fazer

por Luís Osório,    14 Dezembro, 2020
O António não estava de serviço. Mas fez o que tinha a fazer
Luís Osório / DR
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Ainda há uns dias passei pelo quiosque da sua mulher. No Rossio de São Brás, em Évora, António José Doce, polícia de 45 anos, era conhecido por ter uma relação estável e apaixonada com a mãe dos seus filhos, a dona do lugar onde se vendiam jornais e raspadinhas. Era PSP e não estava de serviço. Contaram-me que acabara de jantar e levava o lixo, a sua responsabilidade diária. Foi então que os seus sentidos foram despertos por uma violenta discussão no outro lado da rua. 

Um homem espancava uma mulher. Dizem testemunhas que a agarrava pelos cabelos para a levar a entrar para o um carro. A aparente resistência da mulher pareceu tê-lo levado à loucura. Esmurrou-a, agarrou-lhe pelos cabelos. António não hesitou. 

Foi então ao encontro do que lhe pareceu monstruoso e terá dito ao agressor que era polícia e que tinha de parar. Como o criminoso não travou o passo ou as agressões, António largou os sacos do lixo e correu para tentar que o carro não arrancasse. Mas o carro arrancou. E na fuga procurou atropelar o polícia que o tentara deter. E acelerou. E arrastou o corpo de António 40 metros até travar para lhe passar por cima.

Três horas depois, já passava da meia-noite, António morreu no hospital. E o assassino foi encontrado horas depois em Sintra. Era guarda prisional. E a mulher agredida, a mulher que agrediu selvaticamente, era casada com ele — ao que se sabe, ao que sei, estava ainda com ele quando o apanharam 100 quilómetros depois. 

O António não estava de serviço. Mas fez o que tinha a fazer. Deixa filhos ainda crianças, deixa-os órfãos de pai, mas com o peso do seu exemplo. Defendeu uma mulher agredida e despediu-se da vida por tê-lo feito. Toda a honra para ele. 

Que o seu exemplo encontre eco nas casas em que mulheres são espancadas pelos próprios maridos. Mulheres que calam, que têm feridas no corpo, que vomitam de pânico antes de eles chegarem, que se convencem de que a vida é mesmo assim, que talvez mereçam (como uma vez uma vítima me disse). Que talvez mereçam ser pontapeadas, esmurradas, pisadas, escarradas. Não merecem. Ninguém merece. 

E António, caro António, ainda há dias passei pelo seu quiosque e comprei os jornais. Julgo que foi a sua mulher que mos vendeu. Uma pena não o ter conhecido, talvez um dia ainda nos possamos encontrar em algum lugar mais justo e menos hediondo.  

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