O arquivo da memória em ‘Colecção de Coleccionadores’, de Raquel André
Como guardamos a memória, e como a transportamos? Pode parecer-nos intuitivo, nomeadamente por o nosso cérebro tratar de arquivar tudo automaticamente, mas, no final de contas, só nos fica aquilo que a algo associamos. A memória é um sistema de associações, e o que está associado a determinado momento é o que sobrou dele: um objecto, uma lembrança, uma fotografia, até algo aparentemente tão inútil como uma caneta, mas que pode, afinal, trazer consigo toda uma história.
Raquel André colecciona pessoas, e talvez seja essa a sua forma de lidar com a memória, a sua obsessão. A mesma de outros que, como ela, coleccionam todo o tipo de coisas. Há quem coleccione bonecas, tatuagens, carrinhos, paisagens, cheiros, caixas de fósforos, falos, objectos repetidos, até os que coleccionam plantas, pés de camélia ou coníferas. Raquel André propôs-se coleccioná-las a elas, às pessoas que coleccionam, elas próprios o seu objecto de colecção, receptáculos de memória. Em co-criação com António Pedro Lopes e Bernardo de Almeida, montou um espectáculo, Colecção de Coleccionadores, que nos mostra, agora, no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, entre 2 e 12 de Novembro. Traz-nos aqueles que coleccionou, trá-los a nós em formato de vídeo e através de um objecto da colecção de cada um que o mesmo tenha decidido doar à artista. No vídeo, projectado numa tela montada em palco, vemos excertos das entrevistas a estes coleccionadores, pedaços das suas vidas que partilharam com a artista, que partilham agora connosco. Não vemos nunca as suas colecções, se não através dos tais objectos que Raquel André nos mostra em palco. O que lhe interessa é, acima de tudo, as memórias neles encerradas, e, através deles, mergulhar-nos numa reflexão acerca da memória e do efémero.
Se o vídeo marca praticamente toda a performance, o espectáculo vive muito além dele. Mais do que um documento das memórias destes coleccionadores, é a experiência de Raquel André como coleccionadora de pessoas que é o objecto da performance. A reflexão só é possível no palco, enquanto experiência conjunta da audiência, conduzida pela artista, num espectáculo que se transforma, de uma simples exposição, num projecto de reflexão só possível enquanto acto íntimo de comunhão. A nossa memória é uma construção, mas é também a forma como nos construímos enquanto pessoas, enquanto seres individuais. Neste mesmo espaço, numa sala onde se vão sucedendo perguntas, cada qual responde-as com as memórias que construiu em si próprio, percebendo que todos nós somos também coleccionadores de memórias, qualquer que seja o formato em que as guardamos.
Raquel André vai continuar a coleccionar pessoas. Continuará a coleccionar coleccionadores como continua o projecto que deu origem à sua colecção de pessoas: a Colecção de Amantes, obra que estreou no D. Maria II em 2015, e que regressa agora a esta casa para uma reposição entre os dias 15 e 22 de Novembro, logo a seguir ao final da temporada de Colecção de Coleccionadores. Com estes amantes, ficcionou um encontro durante uma hora, do qual restou pelo menos uma fotografia para guardar uma memória do mesmo. Conhecidos ou desconhecidos, disponibilizaram-se a criar esse momento efémero com ela. O seu número vai aumentando, sendo já 137, e o projecto estender-se-á até que o período em que coleccionou amantes perfaça 10 anos. Como estes, também a lista de coleccionadores continuará a crescer, o espectáculo em constante transmutação ao longo do tempo, e a estas, outras colecções de pessoas se seguirão: a Colecção de Artistas e a Colecção de Espectadores, que finalizarão esta tetralogia de colecções.
Nem só do palco se faz este projecto, no entanto. Uma versão TV da Colecção de Amantes foi transmitida na RTP2, no passado dia 28 de Outubro, transportando esse espectáculo para este novo meio. Além disso, no dia 9 de Novembro às 19h00 lança-se também, em formato livro, o primeiro volume da Colecção de Amantes, com textos da própria Raquel André, mas também de Gregorio Duvivier e de Tiago Rodrigues (que dirige agora o Teatro Nacional D. Maria II). Com tanta coisa a encher este mês de Novembro, não há desculpa para não retirar um bocadinho do nosso dia para fazer parte da memória colectiva de Raquel André.
Raquel André no Teatro Nacional Dona Maria II
O mundo da Colecção de Pessoas de Raquel André no Teatro Nacional Dona Maria II.
2-12 Novembro Colecção de Coleccionadores ● criação Raquel André
15-22 Novembro Colecção de Amantes ● criação Raquel AndréParceria Temps d’Images Lisboa e Lisbon & Sintra Film Festival.
Partilhem muito. <3 #raquelandrePublicado por Raquel André em Quarta-feira, 1 de Novembro de 2017
Foto de destaque por Tiago Jesus Brás, restante por Afonso Sousa.