O autor e a obra
Quase tão antiga como o velho que tenho dentro de mim, salvo seja, nada contra quem gosta, etc, etc, é a discussão sobre a capacidade de separar a obra do autor. Discernir entre o que é o feito e o que é a vida pessoal, humanamente repleta de defeitos, do feitor. Se preferirem, destrinçar a obra-prima do artista, da obra que o artista faz com as primas, eh eh, wink, wink, nudge nudge.
Dei por mim a pensar nisso quando ouvi Nel Monteiro manifestar o seu carinho por Salazar, em entrevista recente a Manuel Luís Goucha. Nela referiu que estava a trabalhar no hospital onde o ditador foi internado após cair da abençoada cadeira, e que conseguiu visitá-lo no seu quarto. Imagino o artista dos caracóis pintados de amarelo cantando baixinho para o mais ilustre paciente do Hospital da Cruz Vermelha, enquanto um pequeno AVC se formava aos poucos, ao ritmo de uma qualquer canção popular da altura. O meu coração destroçado por aquela afirmação sorri, no entanto, ao supor que terá sido a voz de Nel uma das últimas coisas que o raquítico defensor da bafienta trilogia “Deus, Pátria e Família” ouviu, senão mesmo o início da causa mortis. “Azar na Ditadura” poderia ser um bom título para um single inspirado nessa situação, o ditador em tronco nu, Nel Monteiro a pensar como haveria de se ir embora, mas pelos vistos não foi essa a decisão do então aspirante a cantor.
Distinguir o criador da sua criação é tema que já fez correr muita tinta. Não virá mal ao mundo se desperdiçarmos nele mais alguns caracteres.
Em meados da década passada, enquanto víamos um jogo do Manchester United na TV, um tipo que eu conheço disse que nunca tinha lido José Saramago porque “o gajo não pagava impostos em Portugal” (o que até nem parece ser verdadeiro). Não me recordo se o disse antes ou depois de festejar como um louco um golo de Cristiano Ronaldo, na altura ao serviço dos “red devils”. Senti pena por ele se auto privar da leitura do prémio nobel português, mas de imediato me lembrei que aquele rapaz mal sabia o que era um livro.
Eu próprio, confesso, não mais fui capaz de ouvir Pantera sem recordar-me do episódio em que o seu vocalista fez a saudação romana num concerto, e encontro sempre alguma pessoa meio envergonhada do prazer que outros demonstram se, numa festa, o DJ passa Michael Jackson.
No auge do movimento woke e da chamada “cultura de cancelamento” é legítimo questionar se é ético continuar a ver filmes de Polanksi ou Woody Allen à sombra da nuvem de suspeição de abuso de menores que os envolve.
Mas devemos sequer privar-nos de “Annie Hall”? O que ganhamos com isso? Ou essa privação é mais do que justa para, de alguma forma, penalizarmos o autor pelos seus (alegados) crimes?
E se decidirmos usufruir das suas obras ignorando polémicas, conseguiremos abstrair-nos do seu autor enquanto rimos ou choramos vendo os seus filmes?
Podemos/devemos/conseguimos continuar a deleitar-nos com as pinturas de Caravaggio, sabendo que foi um alegado assassino? O facto de o crime ter sido cometido há quatro séculos, tira valor à dúvida?
Demasiadas questões, bem sei. Além de que nem sempre o que idolatramos em alguém é consensual. Eu posso continuar a adorar o sex pistol Johnny Rotten e a odiar o John Lydon admirador do Brexit e de Trump. Outros gostarão da mesma personagem na razão inversa. E há que ver o seu lado também: continuará um “comum pederasta” a idolatrar Polanski apesar da chachada “A Partir de Uma História Verdadeira”? Filosoficamente questionando, claro — como diria o outro, a preocupação de qualquer Humbert Humbert wannabe para mim é refresco.
Será que algum abrutalhado fã de Caravaggio pela sua agressividade acharia os seus quadros uma mariquice pegada?
Já que estamos na pintura, lembremos um dos casos mais célebres sempre que se fala nesta temática: Picasso — um génio ou um monstro misógino? E qual será o pensamento do macho alfa à moda antiga, de palito na boca, se por algum acaso o apanham num museu a olhar para a obra-prima Guernica: “este gajo sim senhor era um garanhão, mas esta merda é uma salganhada que ninguém se entiende!”?
Volto a Nel Monteiro: na realidade, o popular cantor referiu que era “um ídolo de Salazar”. Penso ter-se tratado do comum lapso de trocar a palavra “ídolo” por “admirador”. Todavia, se não foi uma gaffe, podemos retomar a questão: o que pensarão os saudosistas do fascismo quanto a tudo isto? Conseguirão ainda defender o despótico Presidente do Conselho que liderou o país durante 36 anos e “desligarem-se” do hino de apoio à classe operária “Puta Vida Merda Cagalhões”?
O facto é que o ser humano é demasiado complexo para ser analisado de forma simplista à luz dos nossos tempos. É essa complexidade que nos permite continuar a odiar alguém mesmo adorando os seus feitos. Ou não. Temos a liberdade de viver sem guilty pleasures: se não gostamos do autor, desestimemos suas obras. Cancelar alguém é que já me cheira um pouco a censura (Nel aprovaria?). Conseguirei eu esquecer a admiração daquele autor por quem causou um atraso tão grande ao nosso país, quando ouvir os primeiros acordes de “Bronca na Discoteca”? Ou começarei de imediato a bailar, esquecendo tudo o resto?
Uma coisa vos posso garantir: sou homem para comer um bife de vaca enquanto ouço os The Smiths, não abdico de nenhum. Mas entendo perfeitamente que alguém que me idolatrou na juventude por beber largos copos de vinho de penalty considere aquilo que eu escrevo muito desapontante. Só espero que não me cancelem. É que, se for caso (e chegámos finalmente à altura em que coloco uma citação do poeta mencionado no início do texto que não só traz alguma erudição como fecha a crónica de modo inequívoco e com a categoria a que o leitor não só está já habituado como merece pelo preço que pagou), se for esse o caso “fico à rasca, fico à rasca”.