O canto que se perde
Vivo numa cidade que não me deixa estar triste à vontade. É impossível, garanto. Estes dias de azul-ferrete (quando se alude a Eça de Queiroz há sempre a esperança de redimir um texto, amigos) decretam uma obrigação de bem-estar eufórico ou pior, felicidade. Nada contra, é certo. Nem eu tenho prazer na tristeza nem felizmente nada na minha vida desta altura me carrega para rios mais profundos e negros. Até ver, claro.
Mas a tristeza é um direito inalienável e um estado de espírito tão valioso de viver e sentir como o da alegria. E no entanto o mais contrariado, o mais oprimido. Estes dias de implacável azul assim o parecem provar. E obviamente que podemos sempre contar com a proverbial estupidez humana que se lembrou de consagrar um dia do calendário à “felicidade”. Dia Internacional da Felicidade, dizem eles. Celebra-se, ao que parece, todos os 20 de Março por sugestão do simpático reino budista do Butão — que entre outras características nacionais converte o Produto Interno Bruto em “Felicidade Nacional Bruta” — e a sua instituição foi aprovada em 2012 por unanimidade (!) pelos 193 estados membros das Nações Unidas. Tenho a certeza de que em certas regiões do globo assoladas por todos os flagelos possíveis e imaginários esta patusca proposta de um reino distante deve ser amplamente ansiada e festejada todos os anos.
Enfim, amigos, estou a deixar que o azedume me possua outra vez. Regresso ao azul do céu para ver se equilibro o mel e o vinagre da alma. Não consigo: a realidade insiste em perseguir-me e em saber quem sou. Deparo com esta história, metáfora e literalidade em simultâneo. Conto: numa região australiana uma espécie nativa de ave — o australian regent honeyeater, assim mesmo sem tradução depois de ter ouvido quem sabe destas coisas —, dizia, este pássaro está em vias de extinção devido a intervenção humana negligente que destruiu quase por completo o seu ecossistema. Isto, infelizmente, não é raro; deparamos com este tipo de desastre ecológico quase quotidianamente. Mas o mais triste está para vir: devido à escassez dos seus membros, os pássaros não conseguem aprender o seu canto, essencial para o acasalamento.
Ou seja: os mais novos, que aprendem o seu cantar por imitação dos mais velhos, já não o podem fazer. Assim, replicam o cantar de outras espécies — o que naturalmente não convence as fêmeas e assim torna impossível a sua reprodução. A extinção parece inevitável, ainda para mais sabendo que o estado natural destes jovens pássaros é o silêncio, para evitarem serem notados por predadores.
Não saber o seu próprio canto, esquecer a sua própria voz por ausência de interlocutor. Não consigo evitar a analogia com a actual condição humana, cada vez mais sentenciada por vontade própria a falar sozinha, esquecendo-se aos poucos daquilo que foi o canto da sua humanidade apenas porque ouvir o outro parece estar também próximo da extinção. E isto, amigos, nem este céu azul pode salvar.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.