O céu na minha rua

por Martinho Lucas Pires,    23 Junho, 2025
O céu na minha rua
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Final de tarde de um dia de verão: o céu aberto e convidativo, ligeiramente rosa. Há vizinhos que saem à janela para fotografá-lo, como se fosse possível capturar uma coisa assim, tão imensa e transcendente. Aprecio o cenário atrás das janelas, recebendo a calma e o aconchego do exterior, antes de me sentar no sofá e de ligar a televisão.

No ecrã, em contraste com a luz de fora, aparecem-me dois céus escuros. Enquanto pessoas num estúdio televisivo falam com muita propriedade e muito pouco interesse sobre a terrível dificuldade que é existir neste mundo, os céus continuam, com a indicação das cidades a que pertencem: Jerusalém e Telavive. Estamos à espera, no estúdio e em casa, que algo aconteça naqueles locais, a vários quilómetros de distância de onde nos encontramos: à espera de que um, ou dois dos céus se iluminem com uma explosão, ou várias, e que o próximo ato do espetáculo militar que se montou no médio oriente suceda como tiver de suceder, com maior ou menor horror, e se possível, em direto.

Nunca fui a Jerusalém nem a Telavive. Nunca fui a Israel. Fui ao Irão, e a Teerão, há quase dez anos. Lembro-me das grandes avenidas da cidade, com prédios muito altos e jardins pelo meio. Estávamos quase a meio de setembro e fazia algum calor. Lembro-me de subir a um monte e de olhar para a cidade, em busca do sítio onde Kiarostami teria filmado “O Sabor da Cereja”. Estava nesse momento entre vidas, prestes a terminar o estágio de advocacia e a começar um doutoramento, e tudo me parecia vivo, inseguro, e possível.

(O mundo de ontem parece-nos sempre melhor que o mundo de hoje, mas é uma ilusão. O mundo foi e será sempre o mesmo: irascível e imperdoável. O que muda é o nosso olhar, a sua direção e carga. O céu, esse, sempre existiu, como testemunha desesperada das nossas tragédias.)

Robert Frost, poeta americano, escreveu que nada dourado pode ficar. Desliguei a televisão; lá fora, o céu tingiu-se de um azul escurecido e muito melancólico. Comecei a trautear a milésima música dos Silver Jews, a única banda que tenho ouvido neste período de recém-paternidade, para bem dos meus pecados, enquanto fugia da guerra e pensava noutras efemérides. Brian Wilson, mestre de épicos românticos, faleceu; Sly Stone, rei do funk, faleceu. E A Rampa, uma pequena, grande instituição do meu bairro, vai fechar.

A Rampa foi o primeiro sítio onde a Carolina e eu jantámos quando nos mudámos para a zona. Não tínhamos cozinha em casa, e depois de várias horas a arrumar mobília e com mais pó nas narinas do que seria legalmente permitido, fomos lá parar. Senti-me imediatamente bem naquela sala forrada a azulejos brancos e vermelhos a beber uma tacinha de branco, porque os melhores prazeres da vida são aqueles que nos fazem sentir, de uma forma clara e inexplicável, como se estivéssemos em casa, perto do nosso coração, selvagem e sentimental. Durante o meu primeiro ano no bairro, ano esse em que terminei a tese de doutoramento, mudei de emprego, e escrevi crónicas semanais sobre a violência e o amor que sentia enquanto vivia, A Rampa foi uma importante paragem existencial, recebendo-me como eu sou, um sonhador e um viajante, e acima de tudo um lisboeta, o primeiro lá de casa.

O bairro vai perder uma casa, e eu vou perder um mundo que foi muito, e foi muito bom, mesmo que fosse simples. Escrevi, no final desse ano, que “se ao almoço o restaurante já é simpático, à noite ganha um ar ainda mais aconchegante, ao fechar-se sobre si mesmo e levando o bairro consigo, como um bom quadro de Edward Hopper, cheio de natureza e amizade, com uma intensidade muito pacífica, honesta e bonita.” Até sempre.

Sugestões do cronista:

O António gosta de Silver Jews, mas também tem apreciado as guitarras cheias de horizonte do último álbum de Hayden Pedigo, “I’ll be Waving as You Drive Away”. As notícias continuam a ocupar o televisor durante a noite, mas houve uma pequena pausa para ver “Q Department” na Netflix. Estava a gostar do ritmo e de regressar, mesmo que indiretamente, a Edimburgo. Não estou muito convencido com o estilo da biografia de Herberto Helder, “Se Quisesse, Enlouquecia” da autoria de João Pedro George. Parece ser muito bem investigada, mas não tenho conseguido avançar muito. Por fim, estou a ler “Coisas Ruins”, estreia literária de João Zamith. Terror e folclore nas zonas do Cávado e do Ave, com um toque moderno. Estou a gostar.

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