O cinema português e o dinheiro
Parte I
Amanhã vai a aprovação na assembleia uma proposta absolutamente essencial para o futuro do cinema português. Que proposta é essa? Dinheiro. Mais dinheiro para os produtores e realizadores fazerem filmes e por consequência mais trabalho para um sector altamente penalizado pela pandemia e sempre a braços com uma vida profissional precária e sem segurança social digna.
Há quem já ande por aí aos gritos. Dizendo que esta proposta será a morte do cinema português como o conhecemos. Que tudo irá mudar. Que nada voltará a ser como dantes. Pois então, em nome de todos TODOS os realizadores, produtores e jovens que anseiam fazer cinema e nunca ganham os apoios financeiros dos concursos do ICA, digo-vos: ainda bem que muda.
E a importância do que muda é fundamental não só para o futuro mas para a liberdade e democracia que deve existir na sociedade civil e na comunidade artística. A lei proposta diz que as operadores de televisão em streaming ficam obrigadas a investir uma parcela de dinheiro em produção nacional dialogando directamente com os produtores e realizadores, escolhendo eles mesmos, os projectos que desejam passar nas suas plataformas. Ou seja, o detentor dos meios fica “obrigado” a conhecer, dialogar, produzir, comprar o que é nosso. Abrindo possibilidades reais aos que, ano após ano, concorrem aos concursos públicos e nunca ganham nada e mais, abrindo o mercado a novas gerações que não conseguem entrar, por este meio ser tão de difícil acesso.
Há quem ache que esse dinheiro não deveria ficar na mão do seu dono, mas que deveria seguir para o ICA que o colocaria ao dispor dos concursos onde mais uma vez uma seleção de júris com atribuições totais decidir onde investir o dinheiro. Ou seja, há gente que acha que o sistema que temos há 30 anos que tantos problemas tem criado, deveria ser perpetuado numa espécie de lógica monopolista, onde um comité decide subjectivamente quem deve filmar ou não em Portugal. Esquecendo que tem sido exactamente aqui, na forma de atribuição dos dinheiros, razões, júris e subjectividade, que o cinema português tem encontrado a maioria dos seus problemas existenciais. Basta googlar os últimos 20 anos sobre o tema na imprensa.
O cinema português precisa de dinheiro e de liberdade. Precisa do ICA como precisa das televisões, das Netflix, como precisa duma lei de mecenato verdadeiramente boa. Precisa de criar várias formas de financiamento do cinema, para quebrar lobbies, políticas de gosto, assassinatos políticos e criativos. O cinema português terá futuro quantos mais meios tiver ao seu dispor para existir. Os cineastas precisam acima de tudo de dinheiro e liberdade. Liberdade de sonhar com o filme seja ele financiado pelo ICA, com a hbo, a RTP, a SIC, a TVI ou outra empresa qualquer.
Por isso é urgente que amanhã, esta proposta seja aceite e passe, para que o futuro do cinema português comece amanhã e não seja protelado mais uma vez em guerras de bastidores, guerras de pessoas com medo de perder o poder, o protagonismo, o lobbie, a ideia que o cinema deve ser uma actividade regulada por uns onde só entram aqueles que entendem. Por isso é imperioso aprovar um “Abril” para todos aqueles que sonham o cinema. Porque fora todas estas plataformas, associações, festivais e afins, não esquecer que há um país e nesse país há uma geração que deseja viver a sua oportunidade de também ser cinema.
Viva o cinema! Viva a liberdade!
Parte II
A parte mais frustrante de todo este processo é ler/ver pessoas a quem reconheço inteligência, curiosidade e perspicácia que neste momento escrevem/dizem coisas sem claramente terem perdido 5 minutos das suas vidas a informar-se convenientemente. Eu sei que é uma grande chatice ler as directivas europeias, as propostas de lei, ir à procura da informação, mas o que está em causa é importante para o futuro de todos. De TODOS. Até daqueles que ainda não fazem cinema, que estudam e que um dia quererão fazer. Por isso, discutam o assunto, mas por favor, leiam as coisas como deve ser e não “emprenhem” pelos ouvidos ou só porque leram “de lado” o que alguém escreveu no Facebook.
Crónica de Vicente Alves Do Ó
Vicente Alves Do Ó é um cineasta português. Autor de filmes como: “Al Berto” (2017), “Florbela” (2012) ou “Quinze Pontos na Alma” (2011).