O concerto manifesto de Adriana Calcanhotto, no Coliseu do Porto
Depois de passar por Lisboa (10 de Abril) e pelo Teatro Micaelense (21 de Abril), A Mulher do Pau Brasil, apresenta-se no Coliseu do Porto, numa noite em que se celebrou a liberdade em Portugal com cravos e se gritou Presente, pela liberdade no Brasil.
A embaixadora da Universidade de Coimbra veio, ao Coliseu do Porto apresentar o espetáculo, inspirado no movimento modernista brasileiro da obra “Pau Brasil”, de Oswaldo de Andrade. É desde logo, assim que se apresenta ao abrir da noite: “eu sou a mulher do pau-brasil”, numa afirmação de identidade. A acompanhá-la encontramos Gabriel Muzak na guitarra e voz, e Ricardo Dias Gomes no baixo e piano.
Quando conseguimos, tirar os olhos da força hipnotizante, que emana da mulher que se apresenta de preto, damos conta do cenário que a envolve, uma rede vermelha estendida ao fundo do palco (a fazer menção ao calor, aos ritmos quentes), e um piano que promete ser acariciado. E se a dor tem algo de vazio, a voz da cantautora Adriana atinge a sala em cheio com o declamar do poema de Emily Dickinson, continuando nesse tom declamátorio, com “Mortal Loucura”, de Gregório de Matos.
Ouvem-se os acordes familiares de “Esquadros”, e os aplausos que ressoam lembram que voltamos a velha Adriana e relembramos, afinal quem é ela; “é aquela que anda pelo mundo e presta atenção às cores que a rodeia.” Presentei-a nos, ainda com “Onde andarás”, letra de Ferreira de Gullar e interpretada por Caetano Veloso, e “Noite de S.João” de Alberto Caeiro.
Dirige-se à plateia para apresentar o seu amigo, o “gaijo”, Gabriel Muzak, que em resposta a Adriana sobre o que veio fazer para Portugal, diz-lhe que veio para ver. Com essa tirada, que poderia dar nome a um disco ou poema, Adriana se inspira e escreve a música “O que me cabe”, passando o Musak a Musa.
O “Inverno”, preenche o palco vermelho, e temos Adriana a cantar que o “destino sempre me quis só”, e como que a confirmar esta sentença, os músicos afastam-se para o fundo do palco ficando quase invisíveis, deixando no centro do palco uma Adriana que se abraçava e apertava o casaco contra o peito, num gesto simbólico para tentar calar a dor glacial que a atravessava.
Com a retirada de Calcanhotto ficamos com os dois músicos, a presentar-nos com o deslizar dos seus dedos pelo piano. Regressa para cantar que “essa canção não é mais sobre a gente”, mas toda a gente que estava a ouvi-la sentiu que “Era para ser” (gravada por Maria Betânia), para cada um e sobre cada um.
Adriana chama pelos seus alunos de Coimbra, que nas palavras da própria pagaram ingresso para vê-la, na esperança de passarem na sua cadeira. Esta chamada pelos nomes individuais de seus alunos, tem um objetivo simbólico, o de chamar até à sala do Coliseu a presença de Marielle Franco, ao seu nome, todos exclamaram: Presente!
Dirigiu-se à plateia para contar como foi convidada para falar sobre bossa nova em Oxford, e de como decidiu falar, não sobre bossa nova mas sobre o começo de tudo Vinicius de Moraes, que estudara em Oxford. Daqui partiu para o relato de uma curta, mas deliciosa história sobre a forma como viveu Vinicius em Oxford, e como ele achava moderna a maneira como lá se vivia, “ninguém se importa com o que os alunos faziam durante o dia”, e assim só entrava na universidade à meia-noite (hora de recolher obrigatório), para se esgueirar logo pela manhã novamente. São estas partilhas e conversas (em tom de histórias), que ajudam a preservar a memória de um concerto. Serviu também para introduzir “Nature boy” (de AdenAhbez) uma das músicas preferidas de Vinicius, do reportório anglo-americano.
Do clássico “Devolva-me”, que arranca suspiros saudosistas da plateia, voamos para as atuações mais eletrizantes da noite “Vamos comer Caetano” e “Tigresa”, até à nova “Flor encarnada”.
Com “Caravanas” (Chico Buarque), Adriana esquece-se da letra e pede para Gabriel começar de novo “porque o público do Coliseu merece”, recebendo ajuda do músico para recuperar as palavras, que por momentos esquece, mas que tão bem as sente, e tão bem nos faz sentir.
Continuamos em tom de manifesto com “Ogunté”, um retrato desses tempos onde o plástico invade o mar, e o mar traz com ele os refugiados que se fazem dele seu abrigo, porque “já não há Alepo”.
Não foi necessária nem meia hora para que Adriana mudasse a vida, ou salvasse o dia dos que estavam ali presentes quando nos relembra “Vambora”, com a sua voz doce e acolhedora.
Adriana não é indiferente à importância do significado da noite de 24 de Abril para os portugueses, e distribui pela plateia cravos vermelhos, como forma de celebração da liberdade em Portugal. Ao passo deste acto simbólico a voz melodiosa e poética de Adriana despede-se de nós com “Fico assim sem você”, e só nos perguntamos “porquê que tem de ser assim” se o nosso desejo pela voz e presença dessa mulher não têm fim. Uma noite, por certo inesquecível, um concerto; um manifesto; por aqueles que não podem ser esquecidos; e pelas lutas que têm de continuar a ser travadas, tudo muito bem envolvido nessa melancólica forma de poesia, que é a música brasileira.