O contributo humano e científico de René Descartes

por Lucas Brandão,    28 Junho, 2018
O contributo humano e científico de René Descartes
“Portret van René Descartes” (c. 1649-1700), de Frans Hals.
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René Descartes chega aos nossos dias como um dos filósofos mais influentes da história da humanidade, alcançado diversas áreas do saber, como o método científico e o seu uso na álgebra e na geometria. O seu papel de mudança na filosofia e na ciência permite que o afastamento entre ambas se vá diminuindo, com uma aproximação dialética no seu pensamento. Por mais que a influência divina se fizesse sentir, eram outros os preceitos que tinham emergido e mudado o figurino de se analisar e praticar ciência, com o recurso ao cunho da razão.

Ao nível da produção de conhecimento, o século XVII ainda se encontrava profundamente influenciado pela presença da Igreja, que se havia apoderado do acervo que chegava da Antiguidade Clássica, e que era disseminado e interpretado pelos escolásticos. No entanto, vozes dissonantes começavam a surgir, não só na astronomia e na transformação de visões geocêntricas, mas também no primado da razão, para lá da proveniência divina do saber. Esta fase era marcada, de igual modo, pelo conflito entre os católicos e os protestantes, que dividia a Europa e que, por sua vez, influenciava a forma como o conhecimento era perspetivado, não obstante a omnipresença de Deus.

O método lógico-dedutivo da ciência e da humanidade

As origens do conhecimento, do pensamento e da realidade cognoscível não eram, aos olhos de Descartes, plausíveis de serem associadas a uma mera e direta concessão divina. “Discours de La Methode” traça, assim, aquelas que seriam as ferramentas do método científico, as bases de qualquer trabalho investigativo e de qualquer desenvolvimento da ciência nos séculos seguintes. A dúvida é o meio através do qual o conhecimento se fundamenta, colocando-se em causa aquilo que, aos olhos dos antigos e dos escolásticos, estava por ser necessário estar. O filósofo francês introduz a dúvida de forma a questionar a possibilidade do que se assume como certo ser questionado, sendo apenas indubitável a própria criação da dúvida.

Este caminho leva a que se coloque em causa a própria existência. No entanto, a criação de uma dúvida, que se expressa através do pensamento, comprova que alguém existe, como sujeito pensante. Este caminho corrobora a sua existência, assegurando que ele existe. “Cogito, ergo sum” (penso, logo existo) é, assim, a principal confirmação de uma existência que se fundamenta e se sustenta na razão, não se assumindo, desde logo, Deus como justificação primária. Os sentidos, entendidos como as perceções do mundo, assumem um papel secundário, limitando-se a este olhar objetivista da existência humana.

Por sua vez, o método é caraterizado por quatro etapas, que estruturam o método lógico-dedutivo, orientadoras do percurso da dúvida metódica perante a realidade. Inicialmente, perante um certo fenómeno, verifica-se se existem evidências que comprovem a realidade desse fenómeno, para depois se analisá-lo em várias partes, divididas o máximo possível, para serem devidamente filtradas e estudadas. De seguida, sintetiza-se em grupo essas unidades, formulando um todo verdadeiro, dos objetos mais simples até aos mais complexos; finalizando com a enumeração minuciosa das conclusões e dos princípios usados neste percurso, para permitir ser replicado noutros casos similares a este. Esta dúvida hiperbólica, por ser sistemática perante a existência do conhecimento verdadeiro, conduzia ao ceticismo cartesiano. A precipitação e o preconceito não conduzem ao conhecimento indiscutível, aquele que é claro e distinto, fundamentado em evidência. O ceticismo conduz a uma espécie de dogmatismo, confirmando certezas seguras, que potenciassem um conhecimento universal, afastando liminarmente aquilo que é duvidoso.

Muitas vezes as coisas que me pareceram verdadeiras quando comecei a concebê-las tornaram-se falsas quando quis colocá-las sobre o papel.

Discours de la Méthode.

As meditações e o “génio maligno”

Ao “Discurso do Método”, junta-se “Meditationes de prima filosofia”, onde Descartes medita sobre aquilo que se pode conhecer com toda a segurança, sem esquecer de fundamentar o que leva à introdução da dúvida hiperbólica e como esta conduz ao conhecimento irrefutável. As meditações apresentadas procuram sustentar o conhecimento, rejeitando o que se baseia nos sentidos, o que se apresenta nos sonhos e aquilo que resulta de raciocínios matemáticos erróneos, resultantes de um “génio maligno” que se apodera da consciência, destinado a criar ilusões, no auge da sua falibilidade. Suspende, assim, todo e qualquer juízo, voltando a conferir a existência da própria dúvida, a dúvida que resiste à influência do “génio maligno” no pensamento e na existência humana.

Às meditações, junta-se, desta forma, um grupo de objeções e respostas, todos estes sobre o “génio maligno”, que confunde as perceções sobre o mundo e que aprofunda as dúvidas existentes sobre o que se sabe do mundo. Porém, esse génio não obsta à crença dessas perceções, assim como às realidades de pensar e de existir, protagonizadas por uma consciência; e esse génio não seria Deus, fonte de bondade e plano de ausência do engano e do erro. A validação da existência do mundo exterior por origens divinas, por intermédio de Deus, permite refutar quem considerava a visão redutora, em que a única certeza é o próprio ser pensante. A conclusão desta obra é mais assertiva, com o filósofo a declarar “je suis, j’existe” (“eu sou, eu existo”), em que o pensar determina a sua existência.

A ciência e a matemática aos olhos cartesianos

Com o passar do tempo, seu método seria visto com outros olhos, com a evolução da ciência e, principalmente, com o surgimento do inglês Isaac Newton. Descartes possuía uma visão menos apurada do universo, remetendo a matéria à sua extensão em movimento, para além de dividir a realidade na res cogitans (consciência) e na res extensa (matéria), naquilo que é uma visão dualista da realidade e da humanidade. A ligação estabelecida entre o corpo e o espírito era efetuada pelo tálamo, situado no cérebro, onde se integram os impulsos nervosos. A presença de Deus como criador do universo era tomada como determinista, assumida pelos seus mecanismos plenamente verticais. No entanto, o francês não deixou passar a oportunidade de sintetizar a matemática, nomeadamente a geometria com a álgebra, num sistema de coordenadas, que serviria de base para a evolução do cálculo empreendida por Newton e pelo alemão Gottfried Leibniz.

A formação jesuíta levou a este interesse de Descartes pela matemática, que o sustentou na construção do seu modelo de obtenção do conhecimento. No entanto, o pensamento cartesiano avança para lá dos padrões do século XV e do seu sucessor, adaptando a álgebra de François Viète. Este criou a primeira notação sistemática, com a qual passou a representar quantidades numéricas com letras, permitindo a resolução de equações matemáticas para lá de especulações geométricas. No entanto, Descartes e Pierre de Fermat, seu compatriota e também matemático, trabalharam nesta geometria analítica, no uso das letras para a representação de distâncias variáveis.

As equações passaram a ser manipuladas para o estudo de curvas com significado geométrico, levando à formação de gráficos de funções polinomiais (com vários valores que tornam a equação verdadeira) de diferentes graus. Com isto, quis procurar todos os pontos P das funções, com o produto das distâncias estabelecidas entre o ponto e outras linhas a ser equivalente a distâncias em relação a linhas diferentes.  No seu método matemático, Descartes partia das curvas geométricas para a construção das equações, associando-as às curvas e não o oposto, o que acarretava um trabalho mais complicado com equações mais difíceis.

Descartes na medicina

A constituição do corpo humano, aos olhos do gaulês, resumia-se à matéria física e às suas propriedades de tamanho, peso e capacidade motora, o que levava a que fossem as leis da Física a reger esse corpo. No entanto, o filósofo procurava separar o corpo da alma, o que legitimava a explicação de vários dos mecanismos humanos na anatomia animal. Assim, é com base nesta que apresenta o sistema sanguíneo, estabelecendo uma relação de proporção da disposição dos órgãos, das artérias e da sua relação com o coração com a humana.

Descartes compara, de igual modo, o funcionamento do corpo humano ao de um relógio, com mecanismos muito concretos, munido de um motor que estabelece a ligação a todas as funções fisiológicas, que é suportado no ímpeto cardíaco. É este ímpeto, na obrigação da sua contração e do inchamento quando é irrigado, que conduz o movimento do sangue em todo o corpo, naquilo que é o entendimento cartesiano. Já a teoria do ato do reflexo é baseada nos movimentos dos robôs, cujos canos que faziam movimentar os seus membros eram impelidos por água de pressão. No entanto, a diferença parte na vontade humana, que complexifica o espectro de ações executadas no caso humano. Para além dos atos voluntários, o ato de reflexo, que é apresentado por Descartes, surge de um estímulo externo, que provoca esse movimento corporal, não implicando um pensamento por parte do sujeito.

A influência de René Descartes é verificável para lá da filosofia, mas num entendimento amplo daquilo que é a ciência e a sua relação com a existência. O olhar cartesiano perpassa pelas bases do conhecimento e da realidade humana, na herança clássica de vários dos saberes, mas transformando a sua influência na primazia da razão. Munido de pensamento e, portanto, da existência, o francês lançou as bases para um método científico que se pronunciaria, com voz audível, para lá da malignidade da humanidade.

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