O cronista: modo de usar
Passeio-me por casa, sem destino. Aproxima-se o final da tarde e eu sei bem o que isso quer dizer. Então olho para as estantes onde estão os meus cúmplices em forma de livro. Escolho um, nem sequer um de que gosto particularmente. Escolho-o apenas porque está ali e eu preciso dele. Os olhos varrem as letras, nada fica das páginas que leio porque a cabeça está noutro lugar. Estou a adiar a hora da escrita, com um desespero mais ou menos controlado. A perspectiva é sempre um pouco assustadora, esta possibilidade do falhanço em conseguir dizer o que quero e poder ser ouvido. O facto de ser um caçador do acidental e das pequenas coisas não facilita. Nem sequer é a famigerada angústia da página em branco. Afinal, é só uma página em branco.
Não, amigos: é aquela famosa frase que ressoa na minha cabeça como uma sentença: «Detesto escrever, adoro ter escrito», disse a Dorothy Parker. Diagnóstico certeiro da minha condição.
Refugio-me nos rituais pré-escrita: um gin tónico ou um copo de vinho ao lado do computador. Sei que não irão oferecer-me milagres mas ajudam a cabeça a voar com um sorriso. E voa. Voa, amigos. De repente, e sem saber como nem porquê vêm-me à memória outros rituais, mais antigos, da minha infância. Vejo-me com o meu Pai, com nove ou dez anos. É um sábado de manhã soalheiro e subimos devagar a Pedro Álvares Cabral. Entramos num alfaiate, onde o meu Pai fazia os fatos. Seguem-se provas sem fim, medições que o eu-criança não compreendia e com que se entediava. Uma hora depois, terminava. O alfaiate – o senhor Faria – despede-se de mim e eu tento retribuir com o sorriso possível. Depois voltamos a descer a rua e entramos noutra loja de roupa, desta vez infantil: o Brummel (nome que mais tarde iria significar muito para mim). Mais provas e provações, desta vez comigo como protagonista. O meu Pai acompanha docemente este exercício, com paciência, e compreendendo a minha vontade de que tudo acabasse depressa. Subitamente, termina. Mas para mim começa: como recompensa, iria passar uma hora no Jardim Cinema, histórica sala de jogos lisboeta com mesas de ping-pong e uns matraquilhos de hóquei em patins, que eu adorava. Para trás ficavam as contrariedades e só passavam a existir aqueles instantes mágicos, em que o meu Pai me desafiava nos vários jogos. Voltava para casa sempre cansado mas sempre a sorrir.
Continua a voar, a cabeça. E junta, de forma caótica, memórias e observações que não consigo transpor para o papel, arranjar-lhes uma lógica qualquer: um encontro fortuito em Paris em 2009, uma crónica do Fernando Sabino, uma conversa apaixonada e nocturna sobre o estado da música, o cabelo imaculadamente branco de uma senhora que veio perguntar quais os poemas que tinham sido lidos numa sessão de leituras em que participei. A vida está cheia destes pedaços às vezes dissonantes que não cabem na ordem artificial das palavras, quanto mais num texto.
Mas por fim, descubro que hoje é isso mesmo que tenho para dar, esta Babel de memórias e emoções. Sempre achei importante conhecer as nossas limitações e hoje esta é a minha. E olhem, amigos: termino esta crónica com os olhos a brilhar, como se estivesse a jogar matraquilhos de hóquei em patins.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.