O desenvolvimento de personagens nas sitcoms
A comédia, mais que provocar riso e descompressão, é um veículo que, quando bem utilizado, procura suscitar emoções, empatia; que nos faz lembrar situações da nossa própria vida, que faz referências socioculturais relevantes e que em si imortaliza momentos para recordações recorrentes – easter eggs, callbacks e running gags.
Em termos de comédia visual, além de stand-up e sketch comedy, num tempo como o presente, em que o acesso a entretenimento está literalmente “à distancia de um click”, a comédia narrativa tem vindo a ocupar um espaço cada vez maior na televisão/meios de streaming, particularmente sob o formato de sitcoms – ou comédias situacionais. Estas são então séries de pequena/média duração – não mais que trinta minutos – em que, como o nome indica, o enredo principal decorre em torno de um local ou situação especifica. Esse foco inicial, de centrar toda a ação num só espaço, conferiu ao género alguma teatralidade, tendo os episódios começado a ser gravados em frente a audiências – a origem das palmas e gargalhadas em Friends, por exemplo. Contudo, a própria evolução do consumo fez com que, caindo as palmas em desuso, o género se dispersasse ao longo de um espetro que agora triunfa nas áreas de mockumentary, câmara única e animação.
Com tantos subgéneros e tanto por onde escolher, prender a audiência torna-se fulcral para a subsistência da série. Mas como fazê-lo? Através de piadas breves, que provocam riso imediato, mas sem vida a longo prazo; ou investindo no desenvolvimento das personagens, conseguindo daí tirar o melhor partido de todos os momentos do programa.
Ora, o desenvolvimento das personagens assenta na exploração de várias vertentes, como o seu passado e situação no inicio da série, as suas características principais, as suas relações e realizações ao longo da mesma. Este é um parâmetro de especial relevância quando se fala em programas “serializados” (serials), ou seja, com uma narrativa contínua ao longo de todos os episódios – Girls, Silicon Valley –, e não tanto em “procedimentais” (procedurals), onde, em cada episódio, é criado um próprio universo, como nas séries criminais de domingo à tarde: CSI, NCIS, etc. Muitas comédias acabam por cair num híbrido entre estas duas categorizações, como Broad City ou Rick and Morty, em que o desenvolvimento da narrativa principal não é fulcral para o entendimento do episódio, mas relevante para um espetador assíduo criar conexão com as personagens.
Uma personagem bem desenvolvida – falando nas do elenco principal – é uma que faz a audiência ficar investida em si, na evolução da sua relação com o ambiente e os atores com quem contracena, na satisfação e alteração das suas motivações, no seu crescimento. É uma personagem dinâmica, seja esse dinamismo positivo ou negativo para o seu bem-estar – olhe-se para Veep, com um dos melhores elencos conjuntos (ensemble) e guiões televisivos humorístico-satíricos ainda em rodagem, que começou com a maioria das personagens egocêntricas e a satisfazer as suas ambições à custa dos outros, e as levou progressivamente a quebrar ou corromper as suas virtudes, reestruturando-se, e sempre preservando a própria malvadez tão atraente nesta série.
Nas séries que seguem este princípio, somos então capazes de nos sentir parte de uma vivência que é única aos participantes, tornando-se os já referidos running gags – piadas recorrentes, só compreendidas por um espetador frequente – peças fundamentais para a solidificação do programa enquanto um de culto, como um Arrested Development (“Chicken Dance”), um The Office (Gareth vs. Tim / Dwight vs. Jim) ou um Parks and Recreation (Gary, Jerry, Larry, Terry). Foquemo-nos neste último. Parks and Rec – criado por um dos maiores visionários no que toca à comédia situacional moderna, Michael Schur, e seguindo o formato de mockumentary político – começou com uma primeira temporada centrada na frigidez e desinteresse da maioria do elenco perante o mote principal da história – dinamizar o Departamento de Parques da imaginária Pawnee –, contraposta pela motivação e energia exagerada da personagem principal, Leslie Knope. Acontece que, com o avançar das temporadas, esta série de protagonista tornou-se numa ensemble. O público empatizou individualmente com todas as personagens pelo investimento dos roteiristas no seu crescimento. As aspirações de cada um foram sendo reveladas, ou alteradas pelas influências que cada membro do elenco exerceu sobre os restantes, tudo isto à medida que a única personagem inicialmente positiva ia conseguindo cumprir as suas ambições; April Ludgate passou da intocável assistente satanista para uma das personagens mais adoradas do programa, que se apaixona pelo distraído, mas adorável, Andy e tem um amor secreto por animais. O mesmo se aplica a Ron Swanson, o diretor do departamento descrente no sistema que, por trás da sua obsessão com privacidade e atitude blasé, foi revelando um espírito paternal e protetor pela sua família e colegas de trabalho.
Quando o desenvolvimento das personagens falha, é então fácil para um espetador assíduo deste tipo de entretenimento detectá-lo e ressenti-lo. Pensemos em dois dos mais famosos exemplos de sitcoms românticas: Friends e How I Met Your Mother. Ainda que Friends se considere – e com razão – um elenco ensemble, sempre houve uma espécie de foco na relação Rachel-Ross, sendo o will they-won’t they da mesma a única similitude de dinamismo que a personagem do Ross, de outra forma estático, apresenta. Analogamente, na mesma série, a relação Chandler-Monica foi uma que acompanhou o amadurecimento psicológico de ambos, tornando-se em retrospectiva mais relevante de se analisar. Já em How I Met Your Mother, o foco no protagonista menos relevante da história das sitcoms, Ted Mosby – que literalmente passa nove temporadas à procura de uma futura esposa, nunca havendo dedicação por parte dos roteiristas em expressar as suas emoções perante o conflito – impediu uma exploração mais aprofundada dos restantes membros do elenco, que seria de mais valor para o espetador, sendo todos eles mais memoráveis e com um final mais interessante que o próprio protagonista.
Viremo-nos agora para a questão do subdesenvolvimento de todo um elenco conjunto. The Big Bang Theory, uma série em que, para além da química escassa entre personagens, optou por dar a todos as mesmas características, perpetuando o estereótipo de uma estirpe social – são todos geeks, física e intelectualmente semelhantes, incapazes de articuladamente falar com raparigas. E todas as piadas revolvem à volta disso. Não há distância entre o setup e a punchline das mesmas, e a audiência é infelizmente tratada como lowest common denominator; seria de esperar que, com um elenco de diversidade tão limitada, houvesse um maior investimento na vertente da dita comédia, mas cada episódio parece uma mera repetição do anterior – o que se calhar até é o que a maioria das audiências procura, visto que, com onze temporadas, continua ser a comédia líder em audiências.
Em contraste, Modern Family, que também não tem personagens com rotas particularmente desenvolvidas, consegue compensar essa falta com o carisma e individualidade que cada uma delas tem a priori, o humor situacional e a reformulação estilística de alguns episódios (recordo “Connection Lost”, que decorre segundo o ponto de vista do computador de Claire). Poucos são os novos tratos das personagens que vamos aprendendo e vão perdurando, mas, por ser uma série tendencialmente mais procedimental que serializada, as morais, descobertas e realizações das personagens são pensadas para serem singulares a cada episódio. A mesma fórmula se aplica a It’s Always Sunny in Philadelphia, The Simpsons ou até às duas primeiras temporadas de Broad City. Este último caso é interessante, pois, na tentativa de evitar a reciclagem de conteúdo nas temporadas finais, as personagens ganharam dimensões que até então não havíamos conhecido – a dificuldade de Ilana em comprometer-se nas suas relações ou as barreiras com que a amizade das duas protagonistas se depara.
Certamente uma comédia não deixa de ser válida por não investir especialmente no seu elenco – senão o que seria dos sketch shows, como Little Britain ou Portlandia – mas tudo tem o seu ritmo. Dedicar mais de cinco anos de vida a um arco narrativo deveria conferir ao espectador uma experiência mais recompensadora do que a mera reincidência sobre os traços superficiais das personagens que nos acompanharam ao longo de todo esse tempo.
Ao final de contas, a verdade é que o humor é subjectivo, e também o são as nossas motivações. Quiçá há-de chegar um dia em que tudo o que este pessoal – aquele que busca matéria de conteúdo televisivo – quer é chegar a casa e desanuviar com uma gargalhada; quiçá é esse o propósito de tanta oferta televisiva passiva, o simples fazer rir, não fazer sentir. Mas se assim o é, pelo menos façam-nos rir mais alto, não apenas levantar o canto da boca.