O drama das luzes, dos sons e das emoções de ‘Otelo’
O Teatro Nacional São João vem recebendo, nesta temporada inaugural do outono, a peça “Otelo”. Otelo é das personagens mais emblemáticas do percurso da dramaturgia, em especial do seu mestre, o bardo William Shakespeare. Veneza assume o pano de fundo do trama, que é encenado por Nuno Carinhas, diretor artístico do teatro onde a peça toma lugar. As duas horas e quarenta e cinco nas quais o palco é o recinto das peripécias profundas de “Otelo” mantêm o espectador vivo e desperto para o desenrolar do trama, por mais que se ilumine o inconsciente com as possibilidades e potencialidades deste conhecido enredo.
Os jogos de luzes – desenhado por Nuno Meira – e de sons – da responsabilidade de Francisco Leal – constroem um suporte no qual a narrativa flui, numa homenagem esclarecida e capaz às sensações que a leitura da peça imprimem. No entanto, para lá do semblante carregado de Otelo, que assume, naturalmente, o protagonismo por ser homónimo da peça, é, em muitas ocasiões, Iago que recolhe esse mesmo protagonismo. As emoções conseguem silenciar-se num ruidoso conflito com o mundo e com os semelhantes, por mais que não resista, tempo depois, a bradar e a resultar em consequências nefastas para todos.
É um silêncio que nos é narrado por Iago, interpretado por Dinarte Branco, personagem essa sustentada na perfídia e na malvadez, na cobiça e no egoísmo. Um arquétipo que se vem criando num amor quase sem escrúpulos, numa relação que deseja tomar de assalto um coração demasiado puro para a sua funesta alma. Desdemona é a representação desse coração e Maria João Pinho incorpora essa leveza de coração, que a faz sentir o mundo com uma transparência pouco comum. É Iago o denominador comum nas tragédias silenciosas que culminam num fim que, por mais que seja adivinhado no decorrer da peça, não deixa de fazer estremecer com toda a envolvência da peça, que inclui o público.
A presença de João Cardoso como Otelo é talvez aquela que sofre mais metamorfoses. É um homem possante, imponente, que atua como general no Reino de Veneza, assumindo-se como o “Mouro”. Porém, não deixa de ficar indiferente à essência cristalina de Desdemona, deixando a sua dureza ser abraçada pelo seu encanto. Iago transforma a ação e é claro com os espectadores sobre as suas intenções, mesmo levando às atrocidades que tanto tornam o drama áspero e ácido, essencialmente na crueldade que Otelo vem revelando das profundezas do seu ser. Com os outros, mantém-se impávido e sereno, como se toda a ação não sentisse a sua intervenção. É nesta frieza que Iago acaba por, ao invés de roubar Desdemona, roubar as atenções do enredo, conquistando um protagonismo que vinha clamando e que não lhe era conferido pela hierarquia. Em suma, a correspondência dos desejos silenciosos e silenciados é o discurso que predomina e que se faz sentir nesta interpretação de “Otelo”.
Entre a solenidade de Pedro Almendra como Ludovico Sforza, a leal e empenhada Emília, trazida por Joana Carvalho, o espírito oficial de Cássio, interpretado por Pedro Frias, e a irreverência de Bianca, vivida por Diana Sá, “Otelo” é devidamente encenada e encarada no Teatro Nacional de São João. Nuno Carinhas reúne o percurso emotivo e imersivo de um dos tramas mais emblemáticos do teatro de Shakespeare. Reúne-o de uma forma em que o silêncio atua na conspiração entre as personagens, que faz com o que enredo consiga transmitir o peso do enredo, em que a paz que pode e deve reinar nas relações humanas é colocada em causa. Basta um eixo, um nexo de causalidade que faz com o que o amor idílico se transforme numa guerra interna. E é aqui que o discurso do silêncio se faz sentir, de tal forma que, no final, se ouve com ainda mais intensidade. É o discurso que encarna Iago e que faz desencarnar Otelo.