O encantamento de Bing & Ruth, ao vivo na Zé dos Bois

por Tiago Mendes,    26 Maio, 2017
O encantamento de Bing & Ruth, ao vivo na Zé dos Bois
PUB

Na noite mais quente do ano, viajámos para longe; o som clássico e progressivo dos Bing & Ruth esperava por nós, no terraço da Galeria Zé dos Bois (ZDB), no Bairro Alto. O ensemble do norte-americano David Moore estreava-se assim em Portugal. O líder do projecto sentado ao piano, rodeado de um conjunto de quatro outros músicos que ajudam a preencher o espaço com o som sonhador e envolvente das composições de Moore. Bing & Ruth é uma ideia nascida há uma década, mas Portugal teve de esperar até à noite mais quente de 2017 para a ouvir ao vivo. Valeu a pena, para a centena e meia de pessoas que encheram o auditório do terraço.

Minutos antes, o concerto de abertura. Subimos as escadas ao som do contrabaixo do português Bernardo Álvares. Para lá da cortina negra, um homem a retirar de um instrumento sons caóticos e criativos. A experiência importa, na música, descobre novos caminhos por explorar. E, nas músicas a que pudemos assistir, percebemos que – quando assim se deseja, e se tem visão e técnica para isso – se conseguem encontrar itinerários alternativos, nas cordas e concavidades de um contrabaixo. Os momentos de intensa reverberação adicionam atmosfera ao momento, e o concerto serve como um bom prólogo para Bing & Ruth. Em comum, o efeito de crescendo em camadas; e o partir de instrumentação tradicionalmente clássica para a descoberta de sonoridades originais.

As notas iniciais do piano assemelham-se ao desenrolar de uma extensa e complexa tapeçaria, que se começa a desvendar diante dos nossos sentidos. De pé, em cadeiras, ou no chão com as pernas à chinês, o encantamento entre o público é o mesmo. A música de Bing & Ruth é atmosférica; e embora não consigamos distinguir bem todos os instrumentos presentes em palco, por se enrolarem e camuflarem com uma atitude propositada de complementariedade, percebemos que o todo é um feitiço. Há aqui magia, quase visual, cinematográfica; embora cada um dos membros do colectivo permaneça no seu lugar, do princípio ao fim do concerto.

O álbum a ser apresentado é “No Home of The Mind“, lançado no princípio deste ano. É uma composição abstracta e densa, música ambiente com apontamentos melódicos. O piano abre caminho e guia o grupo e o público. Seguem-se-lhe o clarinete, sopro discreto que preenche silêncios; as cordas, que passeiam, sem se perderem, no labirinto sónico, lhe adicionam a profundidade dos graves, e o precioso contributo da harmonia; e um último elemento, sentado diante de um pequeno teclado e de um sintetizador, continuamente a regular botões de reverberação, delay, eco, montando e compondo o resultado final.

Como não sentir, com eles, calafrios, diante de uma composição como “As Much As Possible“? O piano, vertical, deixa-nos ver os martelos que, a cada toque nas teclas, vão bater ao encontro das cordas – ora com mais delicadeza, ora com ímpeto, está à vista do processo. Para nos recordar constantemente que isto da música, embora nos transcenda, é processo do mundo físico. É a física que nos traz estes mantras emotivos, estes enlevos sonoros; e é a física que nos permite compreendê-los, ou pelos menos senti-los.

No corpo de cada um deles, sinais de que a música mexe connosco, em narrativas pessoais e muitas vezes intransmissíveis. Os substractos revelam-se por meio da cabeça do pianista e compositor, que gira de um lado para o outro, com emoção; nos olhos fechados de quem se senta na frente, de clarinete nas mãos, como quem assiste a um filme único; ou num dos contrabaixos de fundo, que abre a boca e faz caretas enquanto interpreta determinadas notas. Não há uma única palavra diriga do palco para a plateia, atenta e silenciosa ao longo dos cinquenta minutos contínuos de música, sem aplausos, como se assistíssemos a uma sinfonia minimalista.

Viajámos, no terraço da ZDB. Percorremos caminhos desconhecidos, e voltámos. Os aparelhos de ar condicionado não eram suficientes para refrescar o ar; e a certa altura parecia que também faziam parte da música, assim como as vozes de quem, no terraço, também percorria caminhos livres, em conversa. Mas ficámos com a sensação, embora a produção não tenha sido tão absorvente como no álbum de estúdio, que tudo isto é necessário para nos recordarmos que, ao vivo, o imprevisto – e a vida tal como ela é – também têm uma palavra a dizer, uma nota a acrescentar. A música é isto. Por isso, agradecemos à noite mais quente do ano ter-nos trazido a este lugar.

Fotografias de Sofia Rodrigues / CCA

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados