O escândalo da alegria
Ergo a taça de champanhe borbulhante e brindo aos que vivem escandalosamente a alegria. Que não se inibem por vivê-la, sem receio de ofender o pudor dos melancólicos, sem receio de ser um mau modelo para intelectuais agarrados à tristeza como drogados à heroína. Muitas vezes a alegria ofende e causa desordem ao modelo da angústia.
Ser triste tornou-se normal, só nas crianças é que este padrão não existe. As crianças têm uma vocação para a alegria. Depois crescem e a alegria parece um talento falhado, uma solução não praticável. Como se a tristeza fosse a academia certa, aquela que nos vai fazer ter um salário certo todos os meses, e a alegria uma opção académica duvidosa, que dá prazer mas que não paga as contas.
Qual terá sido o momento nas nossas vidas em que nos passámos a escandalizar com a alegria, a tratá-la como um presente envenenado? E consolamo-nos com o mal que lhe sucede: “Isto já estava a correr bem demais. Eu logo vi.” Somos a nossa própria ave agoirenta, o abutre à espera da putrefacção da alegria para a devorar.
Estranhamos as coisas boas, desvalorizando com o carimbo do efémero muitas das coisas que podem valer a vida inteira. Será que é porque antevemos sempre no fim da linha a pior das sortes, a morte? Sabemos, de fonte segura, que a alegria está sempre condenada. Todas as histórias acabam mal porque no fim da história, de todas as histórias, está sempre a morte. Mesmo que a inventemos sob formas belas, como Saramago no livro As Intermitências da Morte, em que a morte é uma mulher que toca Bach no violoncelo.
Ainda assim, por sabermos que as histórias no último parágrafo da vida acabam mal, não deveríamos congratular-nos por termos a possibilidade de viver a alegria? Porque será que a alegria soa a pecado ou erro e a tristeza a coisa certa e segura?
Mas há mais: quando todos à nossa volta parecem tristes, surge também a vergonha. Soa escandaloso estar alegre ao pé de pessoas tristes. Quando se é criança, é difícil viver com adultos tristes. Sente-se a imposição da tristeza. Não se pode cantar ou rir porque parece que perturba e ofende o escudo melancólico a que se votam as pessoas crescidas. E fica-nos na cabeça esse modelo, que ser grande é ser sério e que apenas se deve ser pontualmente alegre. A alegria está confinada a uma quota mensal que não deve ser excedida se não quisermos parecer tolos.
Aprendemos que a vida é sisuda e difícil, e a alegria reservada para as ocasiões especiais. Por isso, brindo a todos os escândalos da alegria e rio-me, rio-me sempre que posso, enquanto me for possível escolher ser alegre em vez de triste. Por vezes, não há escolha.