O extravaso sonoro dos Godspeed You! Black Emperor no Porto
Cinco anos depois de estarem no Parque da Cidade do Porto, no NOS Primavera Sound, e apesar de alguns dos seus membros terem cá estado entretanto, os Godspeed You! Black Emperor (GY!BE) voltaram à cidade Invicta, desta feita no Hard Club. Depois do espetáculo no Lisboa ao Vivo, no sábado, no domingo, 10 de novembro de 2019, a banda canadiana entrou com som e circunstância no Porto, com uma cavalaria instrumental imponente e vibratória. Este grupo, fundado a 1994, viveu um período de inatividade entre 2003 e 2010, ano a partir do qual lançaram tantos álbuns quanto os que tinham lançado antes. Foram, precisamente, esses que foram mais explorados na pequena (grande) setlist que se ouviu no Porto, nomeadamente “Allelujah! Don’t Bend! Ascend!” (2012) e “Luciferian Towers” (2017).
No entanto, este extravaso só foi possível com um aquecimento de um grupo que, embora não tão devastador, procurou contribuir para que o ambiente se tornasse entregue aos instrumentos e à música. Também eles canadianos, os Light Conductor exploraram o seu “Sequence One”, o único álbum da banda, inspirado em melodias acentuadamente galáticas, espaciais, que, de certa forma, e para quem já conhecia os GY!BE, soavam de forma mais polida e limpa. Com um pouco mais de vanguardismo, mas também com alguns vocais, a sua forma de conduzir as luzes lembra, de certa maneira, o ritmo progressivo de Tangerine Dream, mas também o experimentalismo de Brian Eno. Um bom aperitivo que convida quem os assistiu a ouvir o seu disco e a conhecer melhor o grupo.
Os Godspeed chegaram à hora combinada, às 21h30, e começaram logo com uma cartada forte. “Hope Drone”, uma faixa nunca lançada em qualquer álbum, antecedeu “Glacier” (também só ouvida ao vivo) e “Mladic” – referente a Ratko Mladic, um dos jugoslavos que seria condenado por crimes contra a humanidade no rescaldo da guerra dos Balcãs, nos anos 90 do século passado – fez soar com estrondo e com uma estranha apetência para a dança. Deu para seguir o compasso da bateria (entregue a Aidan Girt e a Timothy Herzog), a agudez do violino (a companhia de Sophie Trudeau), a acidez das cordas (destacam-se os originais Efrim Menuck e Mike Moya na guitarra e Mauro Pezzente no baixo, mas também Thierry Amar no duplo baixo) com o diapasão das fitas, que desenhavam o dramatismo desta e das músicas que se seguiram. Em média, cada faixa que a banda trouxe tinha uns doze/treze minutos, o que ajudou a que houvesse uma entrega maior e não uma ânsia por um maior número de canções, de forma explosiva e sem raciocínio. Também isto é a essência dos Godspeed, procurando criar uma música de afronta, gerada e centrifugada numa certa distopia, mas que dela se consegue livrar quando encontra o seu ápice e, aí, revela a sua realidade.
Nem duas horas completas foram aquelas nas quais o concerto decorreu, embora desse para perceber esta nova faceta dos Godspeed face ao que eram no pré-2003. Com um poder de armamento mais capaz e explosivo – à imagem das forças bélicas que tanto denunciaram no decorrer da sua carreira -, são, agora, mais expansivos, expressivos e assertivos. “Anthem For No State, Part I” mostrou esse caminho, sendo parte de “Luciferian Towers”. “Cliff” veio complementar-se a “Hope Drone” e “Glacier”, também ela uma faixa, até ver, só dada a conhecer ao vivo, com as hostilidades a terminarem ao som de “The Sad Mafioso”, a única apresentada produzida antes do hiato da banda – faz parte do célebre álbum de estreia “F♯A♯∞”, de 1997. Uma sonoridade única aquela que se fez desconstruir no Hard Club, com o fulgor que, sem vozes, poucos têm. Foram monólogos que o público soube respeitar e estimar, acenando com o entusiasmo corporal que a música convidava a exibir.
Uma das vantagens deste concerto foi de, ao contrário do último realizado aqui no Porto, estar no seu lugar. Um espaço fechado, delimitado, onde o som e a repercussão instrumental, a principal força da banda, estivesse no seu expoente máximo. Embora houvesse momentos em que o violino ou o baixo iam longe demais, sentiu-se, ao contrário do sucedido em Lisboa, que o som ia até onde lhe era permitido. O público não se queixou e apreciou, contemplando a banda com uma salva de palmas no final, na gradual saída dos membros do grupo na última faixa.
Não se ouviram vozes. Ouviu-se a música que os instrumentos pronunciaram, por arte e engenho dos seus intérpretes. A chegada e a ida foram percebidas pela presença e pela ausência, esclarecida pelo gesto de despedida que, um a um, os artistas foram fazendo no final do concerto. Foi uma sensação de dever cumprido, de mais um dia de trabalho completo, seguindo para Espanha, mais precisamente para Compostela. Para os que cá ficam, uma prova viva, na primeira pessoa, do impacto sonoro e instrumental que os Godspeed You! Black Emperor conseguem colocar cá fora, sem a necessidade de usar as cordas vocais para cumprir o seu propósito. O extravaso foi sentido e aclamado. Apesar de se sentir a sensação de ser mais compromisso do que espontaneidade, não deixa de ser arte. É um dom.