O farol da barra
Amigos, deixem que vos fale hoje de pequenos anacronismos que resistem. E se o conseguem é porque são reservas perenes de humanidade, lugares onde estamos entregues a nós mesmos na companhia de estranhos. Deixem que vos fale de um lugar tão ideal quanto próximo, tão remoto quanto quotidiano, tão necessário como desapercebido. Deixem que vos fale da cumplicidade solitária dos balcões de bares ou de cervejaria – da barra, como é conhecido entre os iniciados.
Lugar para partilha ou meditação solitária, para conversas com estranhos que provavelmente nunca teríamos com os que temos por mais próximos. A barra, até pela sua disposição física, é um lugar igualitário: todos valemos o mesmo, todos estamos sentados ao lado de quem calhar, todos somos da mesma altura.
Eu pratico há muito a barra e sempre que posso encontro lá refúgio. Convém que seja num lugar onde sejamos reconhecidos, porque a conversa e o silêncio são dessa forma facilitados. É que também há isto na barra: a possibilidade do silêncio, algo que se está a tornar raro e precioso nos dias de hoje. Não falo do silêncio de quem conversa com ecrãs e outros telemóveis: isso não é silêncio, é isolamento voluntário e perigoso. Não, é aquele silêncio de quem está entregue a si próprio e o único eco que ouve vem dentro de si.
Mesmo quem não pratique a barra sabe do que falo porque a nossa cultura está cheia de referências sobre esses santuários, algumas mais românticas do que outras. Os quadros de Hopper, Humphrey Bogart em Casablanca a ser surpreendido ao balcão por um amor que julgava perdido, as canções de abandono de Sinatra… E aqui, como sempre, tenho que parar perante o maior profeta deste estilo de vida: vejam a capa de um dos seus melhores e mais tristes discos: No One Cares, álbum de 1959 dedicado aos que perderam e ainda estão à espera. Nela vemos o homem vestido com uma improvável gabardina branca, sentado sozinho ao balcão e olhando com tristeza para um copo vazio. Atrás dele, quase como se fosse por troça, vários casais dançam sorridentes. Disquinho duro, este, e recomendável que esteja fora do alcance das crianças.
Mas distraí-me, ajudem-me. Falava desta noção solitária do amor que se perdeu e que ainda se espera ao balcão. Outro grande campeão destes que perdem foi Lupicínio Rodrigues, cantor in excelsis da dor de corno. Os seus sambas simples e com vocabulário elementar dizem mais desta maleita do que alguns romances contemporâneos. E ainda por cima foi quem cunhou originalmente a expressão “dor de cotovelo”: não amigos, não se trata de inveja – a dor de cotovelo tem origem na posição prolongada dos braços em cima da barra enquanto alguém se lembra do amor que foi embora e planeia vinganças atrozes sobre quem o levou.
Mas a barra não vive apenas de perdas e tristezas: vive da alegria das cumplicidades efémeras, dos que entregam tudo no momento e para o momento. Não há exigências de maior nessas alturas.
Nem sequer a bebida é factor necessário (embora no meu caso seja sempre bem-vinda); o que interessa é a conversa, a deriva dos dias, sem necessidade de grandes pensamentos ou aforismos rebuscados. Tive a sorte de ter grandes companheiros de barra (lembro o poeta José Agostinho Baptista ou o grande Eduardo Guerra Carneiro), uns mais cultos do que outros, uns ilustres e outros anónimos. O que fazia (e faz) a magia desses encontros é a comunhão espontânea e sem compromisso. Falamos com o outro, aprendemos com o outro, ouvimos histórias, rimos, desassossegamos. Não é de espantar que um dos mais conhecidos praticantes desta modalidade – o realizador Fernando Lopes – me tenha um dia confessado na barra de um dos mais conhecidos restaurantes de Lisboa e seu poiso costumeiro: «Quando eu morrer gostava que o meu nome ficasse aqui gravado nesta cadeira».
Gosto deste lugar onde nos podemos desaguar. E constato com alegria que, a pouco e pouco, as mulheres reclamam o seu direito à barra que estupidamente lhes foi vedado pela pressão social.
Que assim continue. São precisos lugares onde possamos exercer as nossas solidões sem complexos, por mais felizmente precárias que essas solidões possam ser.
Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.