O feminismo em Mafalda: “Mãe, o que gostarias de ser se vivesses?”

por Ana Monteiro Fernandes,    11 Maio, 2025
O feminismo em Mafalda: “Mãe, o que gostarias de ser se vivesses?”
Quino / DR
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Será que ainda faz sentido, em 2025, pensarmos em Mafalda como um dos ícones máximos do feminismo? Certamente muito mudou desde os primeiros movimentos sufragistas e desde o “flower power” e libertação sexual dos anos 60, mas basta recordarmos como na adaptação que a Disney fez de Mary Poppins nessa mesma década (1964), a mãe das duas crianças, que também pertencia ao movimento sufragista, era retratada como supérflua e, por isso mesmo, como uma mulher que negligenciava os seus filhos por estar demasiado envolvida nos movimentos de luta pelo direito ao voto por parte das mulheres.

Desde então, é verdade que a mulher, no mundo ocidental (não esquecendo a dura realidade que estas enfrentam, sem qualquer liberdade, em outros países), conquistou o direito ao voto, ao estudo e, mais do que isso, o direito ao emprego. Mas é curioso, no entanto, olharmos para reportagens e peças noticiosas do início da década de 90 e percebemos como, por exemplo, em Portugal se discutia, ainda numa altura muito recente, os possíveis efeitos da empregabilidade feminina na maternidade e no cuidado com os filhos. Simone de Beauvoir, autora do “Segundo Sexo”, escreveria o seguinte: “É pelo trabalho que a mulher está a diminuir a distância que a separava do homem, somente o trabalho poderá garantir-lhe uma independência concreta.” Mas esta frase foi escrita numa altura em que a mulher não tinha pleno acesso ao emprego remunerado e, por isso mesmo, se encontrava economicamente dependente de um homem vendo, por essa razão, a sua liberdade reduzida ou anulada. Aqui também teremos de pensar sobre o significado da palavra trabalho, uma vez que o trabalho doméstico também é trabalho concreto. Como sabemos, não foi através da sua realização, muitas vezes, até, aliado a trabalho árduo no campo nos meios rurais, que lhes trouxe respeito, independência e autodeterminação. Mas será que o “trabalho/emprego”, nos dias de hoje, trará mesmo essa liberdade?

Vamos aos factos. Não só a mulher volta a lidar, novamente, com facções que acreditam no regresso da família convencional de outrora – como assim o demonstrou o lançamento do livro “Identidade e Família” e demonstram, até, canais nas redes sociais mantidos por uma facção de jovens que acredita que a mulher não deve, por exemplo, ter direito ao voto – como vemos que se falarmos da emancipação da mulher apenas pelo lado laboral, apesar de todos os avanços, ainda há um longo caminho a trilhar. Segundo os dados da Pordata, em Portugal há 5.052 homens para 5.526 mulheres, ou seja 47,8% da população é masculina, enquanto que 52,2% diz respeito às mulheres. Os mesmos dados da Pordata também assinalam que nas camadas mais jovens, entre os 25 e os 34 anos, há mais mulheres, 47%, a concluírem o ensino superior, do que homens, 34%. Também se constata, através destes dados, que 84% das mulheres trabalham em Portugal, sendo também um dos países com as taxas mais altas no que diz respeito à presença da mulher no mercado de trabalho a tempo inteiro.

As primeiras tiras publicadas de Mafalda, a 29 de Setembro de 1964/ Quino

Mas então o que explica uma diferença de 13% na remuneração média base, e de 16% na remuneração média total (que diz respeito a quesitos como horas extra, por exemplo), mesmo quando sabemos que há mais mulheres no total da população, e há mais mulheres, no momento, a concluir o ensino superior? Apesar destes indicadores, os dados também nos mostram que apesar de as mulheres estarem em maior peso no ensino superior, também é verdade que as vertentes de ensino mais bem pagas ainda continuam a ser dominadas pelo sexo masculino, tal como as ciências, matemática, informática, – com 59% de homens e 41% de mulheres – e as engenharias, construção e indústrias transformadoras, com 72% de homens para, apenas, 28% de mulheres. No que diz respeito a cargos executivos de topo, só 17% das mulheres ocupam estes cargos, estando longe da média europeia de 22% e, claro, outro factor preponderante, é que os trabalhos não qualificados são ocupados, maioritariamente, por mulheres, 68%, enquanto os restantes 32% são ocupados por homens. E sim, no que diz respeito ao trabalho doméstico, as mulheres continuam a ter mais 1h40 de trabalho nas suas casas do que os homens.

Por se falar no trabalho doméstico extra que o sexo feminino ainda tem a mais, pergunta Mafalda à sua mãe, “O que gostarias de ser se vivesses?”, enquanto a suposta “criança” repara na roupa já passada em cima da tábua de engomar; no chão da sala a brilhar; na louça já lavada no escorredor e na sua mãe ainda a lavar a roupa. Não é uma pergunta para uma resposta fácil, e a mãe apenas lança um olhar de consternação como quem diz, “o que é que fiz à minha vida”. O primeiro sinal de feminismo em Mafalda é precisamente este, o confronto geracional com as gerações mais velhas, personificado neste choque de valores entre mãe e filha. A família de Mafalda é tradicional como tantas outras famílias argentinas e ao redor do mundo, constituída pelo pai que trabalha e traz o sustento para a casa – mesmo que precise de muito nervocalm para lidar com Mafalda e o stress do dia-a-dia laboral – a mãe que trata da casa e cujas observações sobre economia vêm só ao de cima quando observa a subida dos preços no supermercado; Mafalda e, mais tarde, o seu irmão Gui. A pequena, não raras vezes repara no antro de rotina da sua mãe: “Como vai esse antro de rotina?”, questiona depois de ter chegado a casa e a sua mãe lhe ter perguntado como lhe tinha corrido a escola. Quer também saber ou conhecer a mulher por trás do epíteto de doméstica. Quem teria sido, então, a mãe de Mafalda? Porque é que não teria estudado e tirado um curso? Porque é que não podia conciliar uma família com um emprego? Ou será que, afinal, a mãe de Mafalda teria estudado?

A criança fica espantada quando a mãe, a mulher por trás do espanador, não só tinha estudado como se tinha dedicado a um estudo a sério. Abandonou a faculdade porque se casou e a sua filha, agora, fica a imaginar como teria sido se a sua mãe, afinal, não tivesse desistido e tivesse conseguido um grau académico. Há, também, um momento em que a mãe limpa as suas partituras, provenientes da sua adolescência, e se lembra da sua professora que acreditava que iria ser uma grande pianista. Acaba por dizer: “A professora Giambartoli, a pobre”. Quase lhe chama ingénua por ter acreditado que tal seria possível, ela própria, uma pianista, mas depois repara que, talvez, a pobre não fosse a professora, mas ela própria por ter perdido uma oportunidade de realização pessoal e profissional. Este era o principal conflito geracional entre mãe e filha. A mãe pertencia a uma geração que acreditava que o estudo e o casamento não eram compatíveis e, tal como muitas mulheres, largou a faculdade para se casar e constituir família. Mafalda, com a sua acutilância e impertinência, recorda que, talvez, as coisas pudessem ter sido diferentes. Já a mãe, por certos momentos, como aquele em que encontra as suas partituras, acaba por ter um rasgo de consciência que lhe diz que, afinal, poderia ter sido bom ter lutado pela sua realização laboral ou por um talento seu.

Mafalda, pelo contrário, com o seu mundo (globo) sempre ao pé de si, representa a progressão e quer lutar pelos seus ideais e por aquilo que considera que faz falta ao mundo. A criança quer ser intérprete da ONU e, com isso, contribuir para a paz mundial com a sua estratégia: sempre que algum líder dissesse algo ofensivo, Mafalda traduziria para palavras de compreensão. Falamos, no entanto, de um conflito intergeracional, mas quanto aos pares de Mafalda, como é que percepcionam o feminismo? Estas personagens podem ter ainda seis anos, mas funcionam, também, não só como arquétipos do ambiente social que as rodeia, como são um reflexo da forma como os adultos à sua volta percepcionam o mundo. Se Mafalda, portanto, era reflexo dos ventos de emancipação que sopravam, a própria teria, de certo, amigas da sua idade que seriam reflexo de uma educação que delegava, somente, à mulher a função de ser mãe e dona de casa.

Essa amiga seria Susanita, cuja aspiração principal na vida era ser mãe e casar com alguém rico capaz de sustentar os seus caprichos: “Estás louca, Mafalda? Estudar ou ter uma carreira? Eu ser engenheira, arquitecta, advogada ou médica? Eu vou ser dona de casa e vou assumir com resignação as tarefas domésticas. Vou ser Mulher! Não uma dessas efeminadas que trabalham em coisas de homens.” É a antítese total de Mafalda, tem uma visão utilitária do mundo e é totalmente desprovida de consciência social. Passeia com o seu bebé de trapos na rua e desabafa como seria bom pertencer à sociedade, mas atenção, a sociedade com apelido. A par de Susanita, existe uma outra amiga, a Liberdade, que acaba por dar uma outra perspectiva familiar a Mafalda. A sua mãe é tradutora, por isso mesmo é alguém que concilia uma formação, trabalho e uma família. Traduz filósofos como Jean Paul Sartre, por exemplo, mas há um senão, não é paga condignamente: “A minha mãe sabe francês, os franceses escrevem livros em francês, ela copia-os para o modo como falamos e, com o que cobra, compra massa e essas coisas. Há um tipo, espera, como se chama? – Ah, Sartre? – Sim, esse. O último frango que comemos escreveu-o ele.” Uma vez que Susanita surge para personificar o passado, a função de Liberdade é personificar o futuro. Susanita pergunta a Liberdade com que idade se quer casar. Liberdade responde-lhe que, por enquanto, como criança que é, quer mesmo o seu pai e a sua mãe. Quando quiser complicar a sua vida por querer pessoas fora da sua casa, logo verá, por enquanto dedica-se às coisas simples da vida.

A época de Mafalda reflecte um confronto entre um velho e novo mundo, com uma antiga e nova visão da mulher que começava a florescer. A concepção de moda e beleza, como esta podia libertar ou objectificar (afinal, o que fica bem a uma mulher usar?) também não escapam à criança perspicaz que vai absorvendo aquilo que vê. São os cremes de beleza da sua mãe que chega a experimentar mas que, afinal, não lhes encontra utilidade alguma; os complexos da sua mãe com o envelhecimento, com o surgimento de algumas brancas e com o aumento de peso, quando repara que o biquini do Verão passado já não lhe assenta da mesma forma: “E se te dissesse que mais de metade da humanidade não pôde engordar nem uma grama porque não teve o que comer?”, diz-lhe Mafalda. Enquanto olha pelas extremidades de um rolo de cabelo, a criança reflecte: “Vejo muitas revistas de fotonovelas, e vejo bailes de bairro, logo depois um casamento, e depois é só esfregar e esfregar a casa até que se seja uma velhinha. E pensar que é só isto que vêem as mulheres que olham para a vida através de um simples rolo de cabelo.”

Mas este “odor a naftalina” – que ainda se ri ante a possibilidade de uma mulher chegar a presidente – já começa a conviver lado a lado com o questionamento do que é isso, afinal, do masculino e do feminino, o que deve ser próprio do masculino e o que deve ser próprio do feminino, porque os Beatles já começavam a corromper estas noções com o seu cabelo comprido, “cabelo à beatle”, que incomodava a facção mais conservadora que considerava que um homem só poderia andar de cabelo bem curto. Surgem também mulheres jovens que ousavam andar, no seu quotidiano, de umbigo à mostra ou de forma mais provocante e como, muitas vezes, as personagens do mundo de Mafalda ficam estupefactas sem saberem como reagir ou pensar. Mas Mafalda também lança as bases para fazermos estas perguntas: O que deve ser um ideal de beleza para uma mulher? Deve esta ser igual a uma Brigite Bardot, ou a uma hippie desprendida de valores materiais e de cremes de beleza? Deve querer estudar, trabalhar, ou antes casar, ficar em casa e cuidar dos filhos? Deve usar calças à boca de sino e camisolas que deixem o umbigo às mostra, ou devem tapar o umbigo? Deve ser gorda ou magra? Deve usar cremes para mascarar o ontem que já passou, ou aceitar as rugas do presente sem esconder os anos que por si passaram? O que significa o umbigo de uma mulher para a humanidade? O que significa o corpo de uma mulher para a humanidade? Como Mafalda questiona: “Se não fosse o que as mulheres têm a sul do umbigo, por onde nasceria a humanidade”? Qual é a importância de uma mulher na humanidade?

Como já constatámos através dos dados da Pordata, mesmo que os indicadores tenham vindo a melhor, ainda há uma disparidade salarial entre géneros que, em teoria, não deveria existir porque há uma directiva europeia para a igualdade salarial entre géneros, que tem de ser adoptada pelos estados-membros até 2026. No entanto, um estudo da consultora Mercer a nível global, indica que, no caso português, 40% das organizações não sabem o que é a directiva, nem o que é necessário fazer ou alterar para o seu cumprimento. O que Mafalda pensaria disto, em 2024? O que Mafalda pensaria também do facto de Portugal ter sido o único país da União Europeia a piorar na igualdade no trabalho, segundo a avaliação feita pelo Instituto Europeu para a Igualdade de Género (EIGE), no Índice da Igualdade de Género 2024, que foi apresentado dia dez de Dezembro? Segundo o Instituto, “entre 2021 e 2022, a pontuação de Portugal diminuiu ligeiramente em 0,2 pontos, fazendo com que o país descesse cinco lugares no ranking da UE para o 14.º lugar”. O mesmo instituto avança que “este declínio deve-se principalmente ao aumento das desigualdades de género no subdomínio segregação e qualidade do trabalho, resultando numa diminuição de 1,2 pontos e numa descida na classificação do 16.º para o 19.º lugar.” Mafalda, portanto, ainda é necessária, desde dos anos 60 até agora, no alto das suas 60 voltas ao sol que completou no ano passado.

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