O fenómeno “Balas e Bolinhos” no cinema português

por Lucas Brandão,    11 Junho, 2023
O fenómeno “Balas e Bolinhos” no cinema português
“Balas e Bolinhos”, de Luís Ismael
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Quando falamos de cinema português, falamos de um cinema ainda muito fechado em si mesmo — não por demérito dos seus intervenientes, mas antes por outros fatores que exigiriam uma discussão de (muito) fundo. No entanto, consoante vamos vendo a nossa relação com o cinema português, lembramo-nos de um fenómeno no ano de 2001, de seu nome “Balas e Bolinhos”. Sob a chancela da Lightbox, a produtora do realizador e argumentista Luís Ismael — sim, não nos esquecemos das denúncias de que foi alvo a produtora —, e por força do Fantasporto, que acolheu a sua estreia, quatro amigos juntaram-se e decidiram fazer uma longa-metragem que homenageasse o ser nortenho e portuense, especialmente o ser valonguense (porque os quatro são naturais da cidade de Valongo), e que desse verdade ao cinema português. Foram eles Ismael na personagem de Tone, Jorge Neto na de “John” Rato, JD Duarte na de Joaquim “Quim” Culatra e João Pires na de Bino.

Para quem não conhece as personagens referidas, falamos de quatro criminosos amadores que tentam, das formas mais inusitadas possíveis, enriquecer e encontrar a tão ambicionada vida de sucesso, rodeada de sexo, drogas e até algum rock n’ roll. O líder do quarteto, Tone, tenta puxar pelos seus amigos e orquestrar os planos de ação para obter essa riqueza; já Rato é o mais expressivo e o que mais “melga” os planos de Tone; Culatra é o homem de trabalho que também é aselha que chegue; já Bino, toxicodependente, é o “burro de carga” e é para quem sobram as tarefas mais chatas.

Neste primeiro filme, feito com um orçamento de merceeiro e sem qualquer financiamento — somente com a alavanca da Associação de Artes Cinematográficas de Valongo —, Culatra, que ambiciona ser DJ em Amesterdão, é despedido do seu emprego num supermercado; Rato está no negócio “das farinhas” e sonha com um Ferrari vermelho, enquanto Bino está perdido na toxicodependência. A saída de Tone da prisão, cinco anos depois, leva-os a reunirem-se e a planearem um golpe numa bomba de gasolina. As balas e os bolinhos de bacalhau que se juntam à mesa — na sala de estar da andrajosa casa de Tone, quando os quatro orquestram o plano enquanto assistem ao fim da novela “Cassandra” — dão o nome à longa-metragem. Ao mesmo tempo, unem o ser português ao ser criminoso sem armas, em que as balas são as asneiras ditas e feitas pelas personagens.

Três anos depois, surge o segundo volume de “Balas e Bolinhos”, em que a história orbita em torno da caça de um tesouro no meio da serra, por via de Rato ter descoberto, num assalto que faz a uma garagem ao lado do seu colaborador Bifes, o mapa desse tesouro. Enquanto isso, cada uma das personagens lida com os seus problemas pessoais: Rato foge da comunidade cigana a quem está a dever dinheiro e procura singrar no “showbizz” (para outros, na indústria pornográfica); Culatra (mais gordo) está no negócio das “carnes”, a prostituição; Tone regressa da Líbia vestida a rigor — “tu és demais, Tone!” —, tentado pela proposta da caça ao tesouro de Rato; Bino, agora viciado em porta-chaves, trabalha nas obras e é um funcionário diferenciado. Juntos, vão enfrentado os inúmeros obstáculos com que se vão deparando com a originalidade e com o rasgo que lhes conhecemos.

Este filme tem a particularidade de, para além de uma produção um pouco mais apetrechada ao longo de mais de 90 minutos — o orçamento foi de 150 mil euros —, ter a presença do humorista Fernando Rocha no papel de Faísca, um dealer de armas que vive no meio de um descampado. À imagem do primeiro filme, são várias as referências a momentos do cinema ocidental, com planos e peripécias que os recordam, mas também, aqui, uma banda sonora altamente exótica, indo buscar canções à Índia e ao Magrebe. De igual modo, aos olhos de hoje, e à imagem do seu antecessor, são muitas as passagens em que atravessam linhas vermelhas. Isto quando temos em linha de conta questões tão prementes como a discriminação racial, a misoginia e a homofobia, entre outras. Embora nos possamos rir à mesma, na ocasião, são temas aos quais não se pode fugir e que acabam por marcar quem vê estes filmes, atualmente.

Não obstante, para além de ter chegado às salas de cinema, a distribuição dos (então) DVDs com o filme foi manifesta, numa fase em que a pirataria também não era fenómeno incomum e que levou a que ainda mais gente visse os filmes. O sucesso foi tal que, no próprio ano de 2004, o regresso de “Balas e Bolinhos” seria, mesmo, o filme mais visto do ano nos cinemas em Portugal. De boca em boca, a aura de culto de um par de filmes absolutamente impoliticamente correto foi ganhando uma atenção crescente e foram tantos os que, nestes anos, foram conhecendo e se foram rindo com a tamanha espontaneidade das personagens e dos seus episódios.

Com um grande interregno, que serviu para os atores prosseguirem outros projetos, surgiu o anúncio de um terceiro volume. “Balas e Bolinhos 3” foi para os cinemas em 2012 e trouxe uma nova aventura, novamente atrás do dinheiro, mas, aqui, de um negociante de explosivos e de dinamite. A produção ainda foi mais ambiciosa técnica e cenicamente — chega a ultrapassar as duas horas — e contou com a presença de ilustres da televisão portuguesa, como Pedro Alves (conhecido por representar Zeca Estacionâncio); Octávio de Matos; Nuno Duarte (ou Jel); o cantor Toy e os humoristas Francisco Menezes, Jaimão, João Seabra e (o regresso de) Fernando Rocha. Isto para além do vietnamita Jason Ninh Cao, que fez de Charlie no conhecido filme britânico “Snatch” (2000), de Guy Ritchie. Todavia, muitas das tais linhas vermelhas, embora não tão descaradamente, continuaram a ser ameaçadas, mesmo que não beliscasse a originalidade do enredo e do argumento.

O enredo traz Tone vindo da China, depois de uma estadia “espiritual”, que retorna a Portugal e é recebido pelo “doutor” Culatra, que exerce medicina à socapa da lei. Tone toma conhecimento que o seu pai precisa de um fígado novo e conta com a ajuda do seu irmão “Jacqueline Rose” — para quem não conhece, que veja — para o efeito. Como sempre, conta com Rato, agora cantor de êxitos afamados como “Sou Eu o Teu Bandido”, que descobre a chave onde se esconde a tal soma de dinheiro do dinamite depois de exumar o cadáver de Bifes, morto por esse negociante, e com Bino, agora artista de rua e que continua a fazer das suas. O sucesso foi, novamente, tão estrondoso que até os Coliseus se prepararam para os receber em espetáculos que tiveram uma enorme adesão. De igual modo, foram feitas algumas curtas-metragens de forma a promover aquele que seria o último filme da trilogia e que exploraria até ao tutano a projeção que o filme teve.

Desde 2012 — uma espera bem maior da que separou 2004 de 2012 — que se exaspera por um quarto filme. Os pedidos têm sido muitos, tanto por parte daqueles que eram jovens em 2000, passando pelos que o eram em 2012, como por parte dos que o são agora. A intergeracionalidade de “Balas e Bolinhos” permanece viva e ligada aos filmes como sempre. As falas estão na ponta da língua e o desejo por esse quarto filme é imenso. Do que se foi percebendo nas redes sociais, ele estará a caminho. Porém, e até lá, não nos deixamos de consolar quando vamos rever o experimentalismo do primeiro, a loucura do segundo e a profissionalização do terceiro. São filmes que, embora pese o vocabulário vernacular e muitas problemáticas sociais que os nossos tempos (bem) suscitam, permanecem vivos como um vigoroso murro na mesa no panorama do cinema português.

https://www.youtube.com/watch?v=ZRl5dgz0g3g&pp=ygUSYmFsYXMgZSBib2xpbmhvcyAz

“Balas e Bolinhos” tem em si uma proposta de cinema diferente, com um impacto mediático gigante, que foi de ser mencionado na SIC Radical para ter milhares de visualizações no Youtube. Difícil de pôr de parte o “spa coina”, a “deusa Fodite” ou o “MacGaitas”, entre tantas, tantas e tantas outras deixas. “Balas e Bolinhos” foi uma prova de que não é (só) uma questão de recursos aquela que afasta tanto o cinema português dos portugueses, mas antes na proposta e na forma como a proposta é dada e esta chega ao público. Os palavrões, inicialmente chocantes, tornaram-se tão vulgares e partes integrantes da ação que só saem valorizados por intermédio das personagens e das suas peripécias. Aliás, até se torna quase chocante ouvir os atores em discurso direto fora do grande ecrã, com uma conversa natural e sem o mínimo vestígio de vernáculo. O imaginário coletivo português ficou mais asneirento, é certo, mas bem mais divertido. A história está escrita e os filmes à disposição de qualquer um. Pelo que há de mais português no cinema português, ide espreitar.

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